quinta-feira, 9 de abril de 2009

Crime Imperfeito

O copo já vira melhores dias. Embaciado e cheio de dedadas, não devia muito à higiene.
Deitei-lhe uma dose generosa, mesmo muito generosa, de bourbon e passou logo a ter melhor aspecto.
O líquido percorreu-me a garganta qual lava dourada e senti -me regressar, lentamente,
ao mundo dos vivos.
O trompete da noite anterior que solava ainda no interior da minha cabeça pareceu começar ouvir-se lá mais ao longe.
O perfume barato e enjoativo da recepcionista do clube, também ela enjoativa e barata, começou a desprender-se da minha pele.
O gabinete onde me encontrava, decadente e com móveis dignos de uma decrépita garage sale, ganhou algum brilho e lembrou-me a placa oxidada colocada lá fora.
“Johny Rose & Partners – Private Eye”.
Johny Rose, este vosso criado…Quanto aos partners nunca tinham sequer existido.
E o trabalho como Detective Particular estava cada vez mais escasso.
Foi então que ouvi o tilintar da porta da entrada.
Coloquei os pés em cima da secretária e peguei no telefone. Uma questão de imagem.
Ela entrou na pequena divisão como a Cleópatra chegava
ao Vale dos Reis só que sem os 300 escravos núbios.
Como a Bettie Page do Playboy, só que vestida.
Não muito mais, porque o vestido de grande decote e racha lateral
pouco deixava à imaginação.
A voz correspondia ao todo. Sussurrada e sensual.
Com promessas escondidas. Com sugestões óbvias.
Continuei com o auscultador encostado ao ouvido e um ar, por certo, imbecilizado.
“- Posso contratar os seus serviços?”- foram as palavras da deusa.
Recuperei o fôlego, bebi nova dose de álcool e respondi displicente:
“- Não vai ser fácil, mas podemos tentar. Qual é o caso ?”
Ela que não era nenhuma novata, calou-se enquanto separava
dez notas de cem dólares e as deixava cair sobre a secretária.
Pareceu-me que a efígie de Franklin se estava a rir para mim.
Já completamente restabelecido e a pensar que podia, por fim,
pagar os últimos seis meses da renda em atraso,
inclinei-me para trás, indiquei-lhe uma cadeira e esperei.
Gostava que tivessem visto o cruzar das pernas
e o decote quando ela se inclinou para a frente.
”- Isto é só um pequeno adiantamento”.
Forcei-me a pensar que se referia ao dinheiro.
“-Quanto ao caso, trata-se do assassinato do meu marido !”.
Dito isto sentou-se no tampo da secretária
a poucos centímetros de mim.
Mudanças bruscas fisiológicas ocorreram
enquanto perguntava, a medo:
“Assassinato? E quando ocorreu? Já há suspeitos?”.
A resposta foi-me dada com a sua boca quase colada à minha:
“Quando? Pode ser um dia destes… e o assassino, claro,
vai ser o Johny !!!”

Agora no escuro da minha cela, enquanto aguardo ser levado
para a cadeira eléctrica, lembro com saudade o bourbon rasca,
os móveis podres e a recepcionista do clube…

Ernesto E. Minguêi

7 comentários:

  1. Fantabulásticamente genial! Parabens Ernesto!

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  2. Muito bom mas um detective não pode cair numa armadilha destas, nem que a maçã seja mesmo das mais apetitosas !

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  3. Body Heat ataca de novo?
    Gostei.Do princípio ao fim, como se estivesse a ler policiais americanos no tempo em que os devorava.

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  4. Ernesto E. Minguêi9 de abril de 2009 às 06:56

    Muito perspicaz Quimera. O conto tem muito de inspiração do Body Heat mas também de todos os detectives dos filmes série B, assim como dos clássicos policiais do Mickey Spillane, Rex Stout, Mike Hammer, e outros que me encantaram em tempos passados. Uns semi falhados com veleidades de conquistadores baratos, mas com alguma piada...

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  5. O autor nem precisava explicar nada.
    Estiive sempre a ler o conto com a imagem do Bogart na mente. No final mudei para o William Hurt...
    Muito engraçado, sem perda de qualidade.
    O tipo de Micro Conto que eu gosto de ler.
    E o anterior deste autor, convem não esquecer, também era excelente.

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  6. Excelente conto!
    O som melancólico do trompete de jazz. A sombra das persianas projectadas na parede. É um perfeito "conto-noir". E só me ocorreu a imagem de Phillip Marlowe.
    Parabéns ao autor.

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  7. Excelente. Um conto(Micro) que nos transporta para um daqueles policiais de séries de TV do estilo tenente Columbo interpretado por Peter Falk. Mai uma vez, parabéns "E. Minguêi".

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