quarta-feira, 1 de abril de 2009

Predicados e outros Defeitos


Nunca fora de namoricos.
Conheciam-se-lhe alguns mas todos à escala da idade e a chegada à maioridade não veio alterar isso.
O primeiro emprego veio também colaborar para que o tempo livre fosse mais dado aos ócios que aos amores.
Mas eles lá vieram. A princípio, a mãe dera-lhe uma espécie de carta em branco a ser preenchida unicamente com a preocupação de ser feliz.
Mais tarde vieram as inevitáveis restrições.
Que fosse pessoa educada, de preferência tão letrado quanto ela. Os modos seriam incontornáveis; que soubesse estar, comer à mesa, dirigir-se aos mais velhos, levantar-se perante a entrada de uma senhora; por fim, as picuinhices: não usar os termos “você”, “quaisqueres”
e, sobretudo, não usar mocassins sem meias.
Naturalmente, tendo sido educada da mesma forma que a sua mãe estava a tentar educar um projecto, ela tinha a tendência natural para pensar do mesmo modo.
E os desaires foram-se sucedendo.
Descobertos os defeitos findavam os namoros, sempre sem grande desânimo, é certo, mas contribuindo para avolumar aos poucos uma sensação de vazio.
Os sucessos do trabalho contrastavam cada vez mais com as falências do amor.
Viagens, concursos, conferências. Promoções, reuniões, aquisições. E, no final do dia, solidões.
Por fim, optou por deliberadamente procurar o amor em vez de esperar por ele.
A agenda previa agora três ou quatro noites por semana para sair à sua procura.
No dia seguinte, o relato à mãe: é giro; veste bem; conhece Parker.
E ainda: tem acne; é a mãe que lhe compra a roupa;
pensa que foi o inventor da caneta de tinta permanente.
E vivia destes episódios quando, finalmente, foi atropelada.
Levou um daqueles abanões dos que só vemos nos filmes.
Ainda guarda na memória o cheiro a manjerico de Junho, no Bairro da Bica.
Entre bandos de amigos, copos de sangria e muita sardinha houve espaço para um olhar cruzado, driblando os magotes de bêbados entre os seus olhos.
Já se conheciam; tinham amigos comuns. Mas não se conheciam, afinal.
Como em quase todas as estórias de amor, o que mais recorda é esse olhar.
Magnético, desafiando a gravidade, existiu por largo tempo, unindo os seus olhos numa linha que tinha tanto de imaginária quanto de inquebrável. E não se quebrou mesmo.
Nessa mesma noite serviu para enrolar os seus corpos, já nus, já quentes.
O fulgor do álcool foi sendo substituído, noite fora, por um igualmente inebriante sabor
a conforto, a entrega e, por fim, chegada.
Estava em casa. Estavam em casa. Um corpo no outro, moravam afinal no mesmo.
Não havia diferença: o cheiro, o toque, o quente da pele. O sabor, então, era o de sempre. Nada estranhava naquele corpo inquilino, suspirava o seu.
Ao amanhecer as mesmas certezas. Veio o convívio do pequeno-almoço.
Depois a cortesia não excessiva e os modos finos.
A mesma paixão pela música com diferentes destinos, para não enjoar.
Falaram de Sartre e de Jung fazendo-se mais inteligentes do que eram.
Mas sabiam-no. E isso era motivo para se rirem.
Passaram a tarde na Feira da Ladra e a noite no King,
vendo filmes checos legendados em francês.
Saíram a meio não aguentando o riso pela chacota aos longos planos mudos.
Nessa noite voltaram a vestir a mesma pele, novamente dentro de um mesmo corpo.
E muitas noites iguais a essa se repetiram.
Quando parou, concluiu: era amor.
Percebia, agora, que era uma questão de encontrar e não de procurar.
E esse pensamento mudou a sua vida, nesse instante, para toda a vida.
A mãe teria, também, a sua recompensa. Todos os predicados lá estavam; não falhava um.
Não que essa aprovação fosse assim tão decisiva, achava.
Mas seria bem mais simples se tudo se encaixasse.
E a mãe, conhecendo-a como a conhecia, haveria de adorar tanto a Maria João quanto ela.

Mrs. Dalloway

7 comentários:

  1. Menos "fracturante" que há alguns anos mas a Mãe não deve ter gostado muito, na mesma.
    Em contrapartida eu gostei bastante desta história de ficção(?) à boa maneira da velha Virgínia.

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  2. Gostei,sobretudo pelo inesperado final.
    E parabéns! à Mãe.

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  3. Começam a aparecer, por fim, histórias de amor sem lugar para os príncipes encantados.
    Parabéns à autora. Protagonista?

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  4. E a MTH terá alguma coisa a ver com isso?
    Gostei bastante da descrição e da cambalhota
    (nada de confusões) final.
    E que sejam muito felizes...

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  5. Margarida Ferreira dos Santos1 de abril de 2009 às 12:20

    A partir de uma certa altura do texto desconfia-se de que qualquer coisa vai acontecer em tanta harmonia, mas o final supera todas as expectativas!

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  6. Mais outro bom conto para a colecção.
    Em quantos vamos?

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  7. Mrs. Dalloway, prazer em conhecê-la!
    Definitivamente a ir à final! Eu acho!!!

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