sábado, 21 de novembro de 2009

As más companhias - Miguel Sousa Tavares

Pode ser que me engane, mas o potencial de danos que Armando Vara pode vir a causar a José Sócrates é bem maior do que todos os outros casos ou pretensos casos que tanto desgastaram a imagem do primeiro-ministro e tão decisivamente contribuíram para a perda da maioria absoluta do PS. Armando Vara (e não a 'Face Oculta') tem a capacidade de, por si só, arrastar Sócrates para a queda num poço de que se desconhece a profundidade. Há amizades que matam, quando se misturam com outras coisas que não são misturáveis. Foi José Sócrates quem, em nome da amizade (porque competência ou qualificação para o cargo ninguém a conhecia, nem ele), fez de Armando Vara administrador do banco do Estado, três dias depois de este ter adquirido uma espécie de licenciatura naquela espécie de Universidade entretanto extinta - e porque uma licenciatura era recomendável para o cargo. E foi José Sócrates quem, indisfarçadamente, promoveu a transferência de Santos Ferreira e Vara da Caixa para o BCP, numa curiosíssima operação de partidarização do maior banco privado português, sobre as ruínas fumegantes do escândalo em que tinha acabado o case study da sua gestão 'civil'.

Manda a verdade que se diga, porém, que estes dois golpes de audácia de José Sócrates em abono de um amigo e compagnon de route político foram devidamente medidos: aparentemente, Sócrates contava com o silêncio e aceitação cúmplice com que toda a classe empresarial e financeira recebeu a meteórica ascensão de Armando Vara aos céus da banca e o take-over do PS sobre o BCP, como se de coisa naturalíssima se tratasse. O escândalo não ultrapassou as fronteiras da opinião pública, de modo a perturbar o núcleo duro do regime. E isso foi um primeiro sinal do nível de promiscuidade aceite entre o político e o económico a que estamos agora a assistir. E, em silêncio sempre, toda a classe empresarial clientelar foi assistindo a uma série de notícias perturbadoras sobre operações bancárias a favor de algumas empresas ou investidores que, por acaso certamente, pertencem ao tal núcleo duro do regime, que goza do favor político da actual maioria. Sempre escrevi aqui que, em minha opinião, o problema do PS não é o que ele deixa de fazer em benefício dos pobres, mas o que faz e consente em benefício dos potentados. O fascínio com o grande capital e os grandes negócios (inspirados, promovidos ou pagos pelo Estado) é a perdição do PS. Aos poucos, este PS tem vindo a copiar o modelo de gestão introduzido por Alberto João Jardim na Madeira: negócios privados com oportunidades e dinheiros públicos, em troca da solidariedade política para com o Governo. Um capitalismo batoteiro, com chancela 'social' e disfarce de 'interesse público'(...).

(...)Como se tudo isto não fosse já alarmante, eis que a justiça implodiu de vez e à vista de todos, em sucessivas cenas lamentáveis na praça pública. A coisa ficou tão anárquica que já se tornou normal ver os jornalistas irem pedir opiniões sobre os casos mediáticos pendentes aos sindicatos dos juízes e do Ministério Público! Não fosse a PJ (única entidade da justiça que ainda merece algum crédito) e um seu investigador de Aveiro, e a 'Face Oculta' nunca teria conhecido a luz do dia ou teria logo patinado. Mas, como os maus hábitos nunca se perdem, eis que tudo já entrou na normalidade, com as escandalosamente normais fugas do segredo de justiça a invadirem a imprensa, tratando de sabotar alegremente uma investigação até aqui conduzida num exemplar silêncio e profissionalismo. E já só pode dar vontade de rir (ou de chorar!) assistir ao espectáculo único de ver os dois mais altos magistrados do país - o presidente do Supremo e o PGR - trocando galhardetes de antiga amizade fundada em rivalidades sindicais, empurrando um para o outro as malditas escutas entre Armando Vara e José Sócrates. Seja qual for o conteúdo de tão sensível material, e mesmo que jamais o venhamos a saber, eles conseguiram já o pior de todos os resultados: instalar uma suspeita mortal sobre o primeiro-ministro e o funcionamento da própria justiça, que não tem reparação possível. É, de facto, notável que o único cidadão deste país que não entende que há coisas que não podem esperar dois meses ou até oito dias para serem reveladas, seja o cidadão que ocupa o lugar de procurador-geral da República! Realmente, o lugar parece estar amaldiçoado e desde há muito.
Junte-se então um governo cujo primeiro-ministro é dado a companhias comprometedoras, um sistema em que se fundem e confundem o político e o económico, o público e o privado, uma justiça que verdadeiramente se tornou cega e surda, mas não muda, um Presidente da República que se desautorizou a si próprio no pior momento, e um país onde as noções de interesse público e serviço público já quase se perderam por completo sem vergonha alguma, e tudo isto começa já a cheirar indisfarçadamente mal.

Cheira a fim de regime e só os loucos ou os extremistas é que podem achar isso uma boa perspectiva para o futuro.

Miguel Sousa Tavares in Expresso

4 comentários:

  1. "Há amizades que matam, quando se misturam com outras coisas que não são misturáveis."

    è por estas e outras que eu gosto de ti, detestando-te no entanto...
    :-)


    O Vara tem uma espécie de licenciatura ? Valha-nos Zeus...




    "O fascínio com o grande capital e os grandes negócios (inspirados, promovidos ou pagos pelo Estado) é a perdição do PS."

    Olha a novidade...
    Todos os 'partidos socialistas', em todos os lugares e todas as épocas sempre foram assim, estavas à espera do quê, milagres ??



    "a justiça implodiu de vez e à vista de todos, em sucessivas cenas lamentáveis na praça pública"

    Poix, e se tentares mexer naquilo, os gajús entram todos em greve ou assim, e depois reformam-se com entre quatro mil a oito mil por mês, e nós a pagar...




    um governo cujo primeiro-ministro é dado a companhias comprometedoras, um sistema em que se fundem e confundem o político e o económico, o público e o privado, uma justiça que verdadeiramente se tornou cega e surda, mas não muda, um Presidente da República que se desautorizou a si próprio no pior momento, e um país onde as noções de interesse público e serviço público já quase se perderam por completo sem vergonha alguma, e tudo isto começa já a cheirar indisfarçadamente mal.

    Só agora é que "começa" ?
    A coisa já fede há uns aninhos largos, onde tinhas o nariz até agora ?? No equador ???





    P.S.

    Quero um emprego como o do Vara.
    O gajú já não lá fazia nada, e agora leva 30 mil para casa por estar suspenso, ao que dixem.
    Também quero, ou há moralidade ou comem todos...

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  2. P.S.

    ok quanto aos "loucos e extremistas e à 'perspectiva para o futuro", todavia o que é que tu vais fazer ?

    Escrever outro livro para estações de comboio e aeroportos ??

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  3. O Alvega está, realmente, muito inspirado...
    São quase seis da manhã e hoje já não tenho força para me rir mais, nem cabeça para o MST; amanhã será!
    Mas imagino o S. Tavares a escrever outro equador, no deserto dela...

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  4. Querem ver que o Luís de Matos fez mais um número?!!?!?
    "Prestidigitou" os votantes nas eleições...e sem sabermos como, apareceu o PS com maioria...Se calhar enganou-se e por isso é que não "saiu" maioria absoluta...

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