sexta-feira, 20 de novembro de 2009

"Bullying" e praxes cruéis em Portugal: história inédita de uma reportagem

Comemoram-se hoje em todo o mundo civilizado os cinquenta anos da sucinta Declaração Universal dos Direitos da Criança e os vinte anos da Convenção sobre os Direitos da Criança – o tratado internacional com maior número de adesões.
Mais importante que as extremosas manifestações que sempre envolvem estas efemérides será alertar para o tanto que falta fazer, também em Portugal, no sentido de intervir e prevenir a violência na escola. É o que procurarei fazer neste texto, não na perspectiva de profissional da educação, que não sou, tão-só na de jornalista que há anos acompanha o tema específico da "violência infanto-juvenil entre pares".


(...) O problema da violência está generalizado. É um problema que afecta de um modo geral as escolas portuguesas, ainda que de escola para escola assuma níveis e contornos próprios. Os agressores, sendo uma percentagem relativamente pequena, causam o mal-estar de um número muito superior de crianças que vitimam. Os colegas que presenciam (as agressões) também são afectados. (...) Toda a escola é globalmente afectada.
Beatriz Pereira, in "A Escola e a Criança em Risco"


SUICÍDIO "POR CAUSA INDETERMINADA"

Comecei a interessar-me especialmente pelo fenómeno negro do "bullying" (tirania juvenil, de forma continuada, em ambiente escolar) há três anos, quando circulou a notícia do suicídio de um jovem estudante português, numa localidade do Norte. As primeiras notícias referiam um «acto de desespero por causa indeterminada", porém um ou outro órgão de informação avançaria mais tarde que não seria alheio à tragédia o clima de violência «no estabelecimento de ensino frequentado pelo estudante.» O que na ocasião deu maior visibilidade ao caso, diminutamente noticiado, viria a ser o insurgimento público de algumas personalidades das ciências da educação contra a forma como em Portugal se ignorava ou subestimava o suicídio juvenil, não raro encoberto sob a falácia da "causa indeterminada". Destacaram-se nesse movimento dois prestigiados pedagogos, Beatriz Pereira, professora e investigadora do Instituto de Estudos da Criança da Universidade do Minho, e Alexandre Ventura, do departamento de Ciências da Educação da Universidade de Aveiro, que alertaram para o facto de o suicídio de jovens no País estar relacionado muitas vezes com o "bullying", embora nunca assumido como tal. Beatriz Pereira, co-autora da obra notável citada na epígrafe e de outras congéneres, já passara pelo trauma de três suicídios nas escolas onde leccionara (dois rapazes e uma rapariga). Sempre "por causa indeterminada".
Aos depoimentos somou-se na internet uma avalancha de testemunhos dramáticos. As vítimas, de costume resignadas a sofrer em silêncio, ganhavam coragem e começavam a desocultar-se. Muita gente – eu próprio – apercebia-se da amplitude inimaginável do problema. Lendo aqueles relatos de sevícias indizíveis, não surpreendia que alguns jovens mais introspectivos e fragilizados tentassem a fuga por meio do suicídio.
Foi neste contexto de preocupação social que o Diário de Notícias resolveu dedicar ao tema uma grande reportagem, indigitando para tal missão uma jornalista que havia sido minha estagiária e se revelara uma repórter de excepcional valia. «Missão impossível», suspirava ela, dias depois, perante o silêncio de pedra em que sempre esbarrava nas tentativas de contacto pessoal com adolescentes referenciados como vítimas pelos alunos mais velhos, amigos e solidários mas impotentes para reagir aos maus tratos praticados no interior da escola ou, com frequência, na periferia. Passada uma semana, essa nossa colega deixou-nos perplexos ao dizer que pretendia desistir da reportagem. Maior espanto ao sabermos que o motivo já não resultava da impossibilidade de falar com as vítimas mas precisamente o contrário: conseguira estabelecer secretas conversas com algumas delas, em condições mirabolantes que pareciam copiadas de um filme de espionagem. Tomámos então conhecimento de que a jornalista estivera na véspera com o "Francisco" (nome fictício) que a todo o momento a advertia: «Se eles sabem que estou a contar estas coisas vão matar-me. E também vão matar a senhora.» Repetiu isto sem fim numa conversa de poucos minutos. As "coisas" contadas pelo "Francisco" eram arrepiantes. Entre outras, a de ser colado com fita adesiva resistente («aquela mais forte, castanha») a um poste da baliza do campo de futebol contíguo à escola. "Francisco", uma criança franzina, delicada, era forçado, sob ameaças de morte e exibição de navalhas, a dirigir-se para aquele terreiro. Ali ficava, pernas, braços e tronco atados. «Mas por que te fazem isso?». Francisco: «Dizem que sou maricas. É por isso.» «E batem-te?». «Às vezes. Outras, é só porcarias.»

A nossa colega mergulhara no poço mais escuro da natureza humana, sobremaneira insuportável ao ter de render-se a uma cruel constatação: não eram adultos os protagonistas das cenas atrozes, antes jovens com idades entre os dez e os quinze anos. Debatia-se agora com um terrível dilema: era urgente denunciar, mas a denúncia poderia acarretar mais sofrimento para as vítimas, porventura a morte. E não era só o caso do "Francisco". Em meia dezena de escolas existiam outros "Franciscos" sob outros nomes fictícios: o caso da "Sara" (a "Vaca"), o "Daniel" (o "Orelhas")... De pouco valeria alterar os nomes se fossem identificadas as escolas. Também estas, em consequência, teriam de ser omitidas. A reportagem corria o risco de converter-se numa suspeitosa montagem de ficções e de omissões. Um medo insidioso apossou-se da jornalista ao inferir, dos avisos do "Francisco", que ela própria corria, de facto, um sério risco. Vieram-lhe à memória olhares de desconfiança que vislumbrara nas escolas, antes e depois de contactar pessoalmente elementos dos respectivos conselhos executivos. «Eles vão matar-me. E também vão matar a senhora.»
Por isso se predispunha, a nossa colega, a desistir. Acompanhei o caso de perto.
Um elemento da direcção do jornal (notável jornalista com quem mantive durante largos anos um companheirismo profissional bem vivo na minha memória), soube do que se passava e interveio de uma forma ponderada. Para ele era crucial que a jornalista estivesse certa de que eram verdadeiros os factos a noticiar. Sendo essa a situação, a reportagem seria publicada com alteração dos nomes das vítimas, e das escolas nomear-se-iam apenas as respectivas regiões (arredores de Lisboa, Margem Sul, etc.). Entretanto, na véspera da publicação, o jornal comunicaria por via directa e formalmente a cada um dos conselhos executivos escolares os nomes verdadeiros das vítimas, com vista às emergentes medidas de protecção das mesmas e informação aos pais. Pediu-se à jornalista um esforço adicional: reencontrar alguns dos jovens entrevistados e fotografá-los com máscaras por forma a impedir em absoluto a identificação dos mesmos.
Assim se fez.
A reportagem seria publicada em Outubro de 2006. E os leitores tiveram igualmente conhecimento de que em algumas escolas do País alunos havia que pagavam a gangues juvenis um determinado montante semanal ou mensal (entre dez a trinta euros) para não sofrerem agressões. O jornal citava uma professora do conselho executivo que assumia conhecer esse esquema mafioso, contudo declarava-se impotente para o suprimir porquanto «os locais de cobrança mudam constantemente».
O Ministério da Educação esclarecia, por esse tempo, que o "bullying" em Portugal representava apenas cinco por cento dos problemas do sistema de ensino.

"CATÁLOGO" INFINDO DE HORRORES

Nesse mesmo mês ressurgiu a eterna controvérsia à volta das praxes cruéis. Evocou-se a morte do jovem Diogo Macedo, em Famalicão, durante um ritual praxístico que lhe provocou múltiplas escoriações corporais, além da fractura de uma vértebra cervical (causa da morte, segundo a autópsia). Outro jovem sofrera edema na laringe em resultado de uma prova "popular" denominada "Berraria" (o caloiro é forçado a berrar durante horas, perseguindo um insecto ou um pequeno vertebrado prepositadamente mutilado para lhe dificultar a locomoção).

Subindo de escalão etário, desviemo-nos por momentos do “bullying” infanto-juvenil. As crianças vítimas de “bullying” tornam-se mais tarde, com frequência, agressivas. No limite reencontramo-las como autoras das “chacinas de vingança” como as ocorridas sobretudo em estabelecimentos de ensino norte-americanos. Pedagogos consideram que alguns dos mais inclementes universitários praxantes (os “veteranos”) foram outrora crianças agredidas física e psicologicamente de forma continuada. E os praxados de hoje serão os praxantes de amanhã, tendendo a “refinar” os actos da chamada “tradição académica”.

Encontram-se documentadas em vídeo ou por meio de registos fotográficos algumas praxes insuportavelmente bárbaras. Menciono quatro:

"Shot". O praxado mastiga uma malagueta, após o que ingere um "shot" de vinagre e azeite.
Simulação de actos sexuais. A rapariga caloira simula fazer sexo oral com os "veteranos" ou praticando outros actos com um poste. O rito completo passa por simulação de orgasmos.
"Barrelada". Corte de pêlos púbicos (há dois anos, um jovem sofreu ferimentos graves no escroto).
"Elefante Pensador". O praxado, de joelhos, deve mergulhar a cabeça num balde cheio de excrementos de porco ou de vaca (esta praxe confinava-se à Escola Agrária de Santarém, crê-se ter cessado).
De realçar que um ex-director do referido estabelecimento defendeu esta praxe, declarando que o contacto com a bosta é "natural".
Admite-se que mais de 50 por cento dos rituais praxísticos que continuam a praticar-se em Portugal são «ofensivos, intimadores e violadores da dignidade da pessoa humana». O "catálogo" de praxes é infindo. Numa extensa reportagem dedicada ao tema, a jornalista Fernanda Câncio fez uma síntese lapidar: «Há praxes para tudo, ou de tudo nas praxes» .

O "CORREDOR DA MORTE"

Retornando à reportagem do Diário de Notícias. O mais jovem testemunho chegado ao jornal era o de um menino de oito anos que usava a expressão "corredor da morte" para designar uma espécie de praxe na sua escola cuja singularidade era prolongar-se por todo o ano lectivo. Com fantasioso exagero e a propensão tão habitual nas crianças para captar palavras e ditos do quotidiano audiovisual, o "corredor da morte" era de facto um corredor formado por duas fileiras de alunos do 2º ciclo que batiam (pontapés, "carolos") nos novatos do 1º ano obrigados a fazer aquele percurso. Quem chorasse teria de passar segunda vez. E todos recebiam ameaças de morte se denunciassem aos pais ou professores as agressões. «Por que fazem isso aos vossos colegas mais novos?» – perguntou a jornalista. Resposta:. «Fizeram-me o mesmo quando vim para a escola.» Resposta idêntica darão os universitários "veteranos" promotores das praxes.

Ainda antes de publicada a reportagem, soubemos que o "Francisco" se encheu de coragem e contou à mãe o que se passava com ele na escola. O pai assumiu pessoalmente a protecção do filho, recorrendo à colaboração de um polícia amigo.
Pelo menos dois jovens citados naquela investigação jornalística ("Daniel" era um deles) foram transferidos para outras escolas.
E poucos meses depois, em Fevereiro de 2007, comecei a delinear um novo livro ao qual daria o título de Botânica das Lágrimas.



Pedro Foyos
Jornalista
A foto que reproduz uma cena de praxe é da autoria de Joaquim Santos.
O "cartoon" é do nosso bem conhecido artista Henrique Monteiro.

11 comentários:

  1. Não calar. Não esquecer. Não fingir. Denunciar. Publicar. Reportar. JÁ!

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  2. Sem dúvida um assunto muito importante e, infelizmente, cada vez mais actual.
    E sei do que falo porque no meu local de trabalho já ocorreram dois casos destes que só não terminaram em, mais, tragédia porque eu e os meus colegas estavamos atentos e agimos a tempo.
    Parabéns ao autor e ao blog, por ter publicado.

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  3. Debejezuuz, que a coisa é comprida.

    Vou tentar ser sintético:

    1. Isso dos direitos de....... (preencher aqui) é uma enorme fantasia.

    Direitos sem deveres é uma porcaria concedida, pode-se tirar por quem concede a qualquer momento. Melhor tentar conquistar a coisa.

    2. Nas escolas, os meninos que não fazem parte do 'grupinho' dos bonzões, levam.
    Eu apanhei, no meu tempo, e endureci, e ainda aqui estou.
    Queixinhas é ali ao lado, no raio que os parta...

    3. Quando dei umas horinhas de aulas numa escola que por acaso até já nem existe, os meninos do 8º nocturno resolveram fazer uma espera à profª de História (uma gaja de Letras, pequenininha...).
    A coisa foi ao Conselho Directivo (ou lá o que era...) e empancou por lá.

    Eu peguei no Vasco e em mais dois gajos do IST e pregámos um susto valente ao instigador/idiota, que depois até foi parar à bófia (PSP, aceitam qualquer um...)

    Nunca mais a coisa se repetiu, não há nada como a acção directa...

    Como dixiam os gajos do Collor (e ele foi despedido e tudo, no meu tempo do Brasil) "Bateu, levou !

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  4. Um murro no estômago ... Um post fabuloso !

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  5. Um assunto demasiado importante que não passa pelos "queixinhas" nem pelo "endurecimento" de macho( e as raparigas?), nem pode
    ( poder,pode, mas não deve) ser tratado com a leviandade habitual do simpático Alvega ( que de tão brilhante, me lembra por vezes o ex-ministro Braga Macedo a quem chamavam o Adiantado Mental!).
    Mas voltemos ao ponto realmente importante, e estejamos todos atentos, porque a violência nas escolas e faculdades tem atingido níveis em nada comparáveis aos dos "good old days" de alguns saudosistas...

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  6. PG, não há em lado nenhum $$$ suficientes para pôr um polícia atrás de cada criminoso.

    Portanto ???

    :-)

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  7. Só uma pessoa e um jornalista com a sensibilidade e o humanismo do Pedro poderia colocar aqui este post sobre a antiga reportagem que igualmente não abandonou como jornalista eticamente responsável e sentindo que teria de ir até ao fim como o devem fazer os que são verdadeiramente jornalistas. Esta história trágica como muitas outras que todos vamos conhecendo deviam não ser esquecidas e quando trazidas a lume e conhecidas das entidades responsáveis e que têm a possibilidade de as evitar, através de medidas de acompanhamento, quiçá psiquiátrico (para que os abusados não se tornem mais tarde abusadores e isso sirva para se justificarem), mas sobretudo para neste país, apesar de sabermos que a prática existe em muitos outros, os decisores actuassem (na plena acepção da palavra) actuando e agindo e não se limitassem como parece acontecer a colocar algo num papel e despachá-lo para onde lhes é habitual fazê-lo: "Para conhecimento e averiguação". E por esse caminho se vai perdendo o "incrível" despacho. Exista a coragem de actuar quando é necessário. Porque será que as praxes tendem a ser cada vez mais violentas em vez do contrário". Infelizmente, talvez o retrato que copiam do que o próprio homem vai fazendo no mundo em que vivemos. Até quando? Não desista Pedro. E quanto ao Alvega nem merece resposta

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  8. Achar o bullyng coisa de maricas é a atitude estúpida que permite a ‘animais’ vestidos de gente andem a humilhar e a violar o direitos dos outros. Normalmente, mais pequenos ou solitários. Estes ‘animais’ preferem actuar em matilha que é o para mais fraco aprender melhor a lição, segundo o nossa amigo apreciador de bulling. Certo????
    É por isso que há homens e Homens.

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  9. PG, posso ?

    Me "adisculpe".

    :-)

    Até aqui próximo da aldeola há cursinhos onde um ex-comando qualquer ensina as "raparigas" (não usar este termo no Brasiu, please...) a defender-se, e a defender-se bem.

    Há moças por aí que podem até parecer frágeis, mas que me dariam uma bela de uma sova se eu a merecesse (e eu sou 1.80 m e 80 kilos de mim).

    Reconheço que nem toda a gente terá pachôrra para aprender, e que haja ainda mais gente que ache que o estado, a civilização ou w.t.f., é que deviam assegurar isso.

    No Québec por exemplo, a Segurança Social indemniza as 'vítimas' (a coisa chama-se IVAC, Indémnization aux Victimes des Actions Criminelles)

    Mas em não sendo assim 'partout', como fica ??

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  10. Não liguem...
    Tanta erudição que até parece que estou a ler o ABRUPTO!!!!

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  11. Mas o que se pode fazer em situações de bullying?
    Actualmente tenho uma jovem da minha familia que foi agredida na escola por uma colega, elas sao ambas menores e a policia diz que nada pode fazer porque foi dentro da escola e porque sao menores.
    E a escola ja disse que nao vai fazer nada, eu acho que a expulsao ou suspensao seja solução, acredito mais num castigo como trabalho comunitario, em que teria de fazer um trabalho durante umas horas todos os dias, mas um trabalho que para eles fosse humilhante que nao gostassem como limpar casas de banho das escolas que frequentam.
    A escola nao tem a obrigação de garantir a segurança das crianças dentro da escola? entao como posso obrigalos a fazer isso?

    Obrigado

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