Muitos dos fantasmas orwellianos têm vindo a tornar-se inquietantemente visíveis. Povoam o lado mais sombrio do nosso presente e futuro. Exemplos: o despótico controlo policial
dos cidadãos (estejam dentro ou fora de suas casas), os métodos sinistros para forçar "confissões", a "mobilização das massas" contra perigos imaginários, a falsificação da História, o aniquilamento
da memória, a supressão da privacidade, a vigilância informática,
a guerra como espectáculo, a degradação do ser humano – sem vontade própria e reduzido ao abjecto papel de autómato sujeito à autoridade de um aparelho omnipresente que tudo fiscaliza
e em tudo interfere.
No romance de Orwell tudo se passa sob o olhar magnético
de Big Brother, o protector que tutela a opressão suprema.
Não basta obedecer-lhe. É preciso amá-lo.
O mundo foi dividido em três Impérios que se digladiam sem cessar: a Oceânia, a Eurásia e a Lestásia. No primeiro destes superestados, o Partido governa por intermédio de quatro ministérios com denominações eufémicas (os eufemismos, cuja expressão magna é o próprio Grande Irmão, são uma constante orwelliana). O Ministério da Paz trata dos assuntos de guerra: o Ministério do Amor incentiva o ódio e alberga a Polícia do Pensamento; o Ministério da Abundância zela pela dependência que advém da carência;
e o Ministério da Verdade ocupa-se da propaganda das mentiras.
Acções, palavras, pensamentos são vigiados permanentemente pelo Estado. Toda a população, quer esteja acordada ou a dormir, é perscrutada por monitores de televisão incorporados nas paredes
(a teletela). Por todo o lado existem cartazes que proclamam:
Big Brother Is Watching You
(O Grande Irmão está a observar-te). O idioma oficial, a novilíngua, é uma espécie de versão estenográfica do inglês. As palavras foram restringidas a enunciados semânticos das ideias, um processo de banir a memória. Porque... extinguindo-se as palavras, subjugam-se as opções do pensamento.
Winston Smith, um ignorado funcionário do Ministério da Verdade, está incumbido de reescrever o passado, adaptando-o à actual ideologia do Partido. Sabe que, fora das funções oficiais, é proibido escrever (um acto delituoso: para escrever torna-se necessário pensar). Mas aprendeu a esquivar-se à teletela, no seu cubículo, ocultando-se sob o ângulo de uma reentrância da parede.
Ali mantém um diálogo com o seu próprio diário, sem a licença do Partido. Inconformado, consegue juntar-se ao grupo liderado por Goldstein, um revolucionário, inimigo do sistema, autor de um livro conhecido apenas por o livro. Regularmente, a teletela mostra o rosto de Goldstein – um momento designado "dois minutos de ódio".
Smith e Júlia, uma sua colega de repartição, alugam um quartinho secreto num velho antiquário onde se entregam à leitura dos textos de Goldstein. E cometem novo crime: o amor. Pois todo o afecto pertence ao Partido. Em exclusivo. Ambos são surpreendidos pela Polícia do Pensamento e conduzidos ao Ministério do Amor. Submetido a torturas brutais, Smith acabará por trair a companheira, eliminando, assim, o derradeiro traço da sua integridade.
O pesadelo fecha-se sobre este homem-autómato.
A sua existência restringe-se agora à fidelidade ao Grande Irmão.
Mais um bom membro do Partido.
Entender-se-á melhor esta obra de Orwell sabendo que a mesma foi escrita dois anos após a Segunda Grande Guerra, logo a seguir a outra criação magna, Animal Farm. Estava-se, então, em pleno estalinismo e primórdios da guerra fria. O escritor morreu sete meses depois da publicação. Numa entrevista a um jormalista inglês, questionado sobre o possível carácter premonitório do livro, Orwell preferiu qualificá-lo como «uma extrapolação sociológica dos sinais totalitários emergentes.» Acrescentando: «O totalitarismo, não sendo combatido, triunfará em qualquer lugar. E, então, qualquer coisa parecida poderá acontecer.»
Comentando a entrevista, o editor do jornal colocava aos leitores algumas perguntas perturbantes:
«Poderemos imaginar a humanidade, ou uma grande parte da humanidade, tendo Estaline como Senhor do Mundo?
Poderemos imaginar o Mundo consequente à última Guerra Mundial consumada numa vitória de Hitler?
Pois isso seria muito, muito mais do que uma coisa parecida».
Passaram sessenta anos.
Possivelmente, substituindo as personagens, as perguntas permanecem actuais.
Pedro Foyos
Jornalista
Imagem de abertura:
Orwell visto pela artista Jeffrey Smith,
Orwell visto pela artista Jeffrey Smith,
numa alegoria à obra "Animal Farm".
Eric Blair era um gajú do caraças.
ResponderExcluirStalin (o big brother, com o Beria watching you) era um f.d.p.
Parabéns pelo texto P.F. !
Recordo-me que em 1984 - tinha então 13 anos - o livro voltou a ser muito falado.
ResponderExcluirQueriam dar-lhe a imagem de uma espécie de novo Nostradamus, o que não era nem de perto aquilo que Orwell era realmente.
"Realmente" é aqui a palavra chave. Porque Orwell não foi um "vidente". Muito pelo contrário, Orwell foi um pensador da conjectura real que o abraçou e soube extrapolá-la para cenários possíveis num futuro não muito longínquo.
Foi um visionário sim, mas sem poderes advinhatórios; apenas inteligência e muita sociologia...
MdT, estou básicamente consigo.
ResponderExcluirMas não era só sociologia.
O senhor, que provinha de "landed gentry"/pequena nobreza/proprietários de província decidiu ir ver como as coisas eram... e foi.
E saiu-lhe da pele.
A inteligência dele vem de saber de experiência feita, não de estar à conversa num café...
:-)
Li num lado qualquer que Orwell só autorizava que o título do seu livro mais famoso se escrevesse por extenso -mil novecentos e oitenta e quatro.
ResponderExcluirMas, pelo exemplo do texto, vejo que tal não tem fundamento...
Alguém tem mais algum elemento acerca deste facto?
Não tenho a certeza, contudo parece-me que o Eric Arthur Blair (nom de plume George Orwell), à uma já estava doente como o diabo em 1949 (TB) quando escreveu isso, às duas a ideia não era exactamente a data, mas sim a ideia:
ResponderExcluir"He who controls the past, controls the future" .
O título sempre foi Nineteen Eighty-Four em inglishe mesmo.
:-)