segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

História inacreditável do livro cuja venda só era autorizada com requisição médica

Correspondendo às mensagens dos confrades que realçaram o interesse pedagógico do episódio aqui revelado na quarta-feira, em torno do famoso cientista Ivan Pavlov, um Prémio Nobel da Medicina censurado em Portugal no tempo da Ditadura, deixo-vos nova história, igualmente extraordinária, porventura ainda mais instrutiva.
O protagonista, também desta vez, é um insigne cientista galardoado com o Nobel de Medicina (em 1949, partilhando o Prémio com Walter Rudolf Hess).
Nome, de todos conhecido: Egas Moniz.
Recuemos a Outubro de 1953, vésperas de Eleições Legislativas. Desde 1934, data das primeiras Legislativas, que os sectores oposicionsitas manifestavam a impossibilidade de participação em actos eleitorais sem as condições mínimas de liberdade de expressão. Salazar anunciava que os Serviços de Censura actuavam nesses períodos apenas no sentido de impedir a divulgação de notícias falsas, propagadoras de subversão da opinião pública. Na realidade, a Ditadura mais não fazia que aliviar brandamente a mordaça, numa grosseira encenação de liberdade, pois todos os textos continuavam a passar pelo crivo censório e muitos vinham proibidos ou golpeados.
Mais uma vez, nesse ano de 1953, o regime proibira a Oposição de fiscalizar as eleições.
Deflagrou então um acontecimento jornalístico que muito viria a apoquentar Salazar. Foi o caso que o director do diário oposicionista República, Carvalhão Duarte (viria a ser o meu primeiro director na década seguinte), tomou a iniciativa de pedir a Egas Moniz uma entrevista sobre o momento político. Eram conhecidas as ideias progressistas do cientista, denodado crítico do regime de "Partido Único", porém não se esperava que as suas declarações atingissem um grau de desassombro verdadeiramente estonteante naqueles tempos.
A entrevista seguiu para a Censura sem grandes esperanças de que viesse a ser autorizada. Ainda por cima "puxara-se" para título uma das declarações mais explosivas do entrevistado: «A comédia (eleitoral) vai repetir-se!» Todo o texto, aliás, estava enxameado de "subversões" impublicáveis, na óptica do regime. Respigamos um fragmento:

«A liberdade de pensamento é um dos direitos do Homem. (...) A geração de hoje representa uma população separada por largo rio caudaloso. Na margem direita estão os que mandam e gozam as liberdades fundamentais e o bem-estar que dão as brisas do Poder. Podem escrever como melhor lhes correr a inspiração, sem serem incomodados pelos esbirros censurativos. Na margem esquerda acotovela-se a multidão forçadamente silenciosa a quem, de tempos a tempos, se concede a caridade de poderem falar mais desassombradamente, embora dentro de certos limites.»
No estilo cerimonioso e rebuscado da época, o jornalista pergunta:

«V.Exª tem razões de queixa da tesoura eliminatória da Censura? »
Egas Moniz responde:

«É assim mesmo. Revivem as velhas usanças da Mesa Censória. Mas há dois séculos era uma única entidade que revia livros e publicações. Seguia mau critério, mas era pouco sujeita a flutuações. Hoje, com a expansão da Imprensa, há censores em todos os distritos e províncias ultramarinas. Trabalham à compita, com severidade desigual, mas no propósito de cotarem dia a dia e de cada vez mais alto os seus méritos.»

O cientista faz depois alusão às páginas da sua obra Confidências de um Investigador Científico que sofreram cortes – "ficou gravada a garra do vexame.»
Logo a seguir, o relato do mais inimaginável dos absurdos.
A obra A Vida Sexual, que Egas Moniz começou por dividir em dois volumes ("Fisiologia" e "Patologia") e depois reunidos num só, foi mandada apreender nas livrarias. Arresto policial em todo o País.
O editor sentiu-se seriamente prejudicado, protestou e solicitou do ministro do Interior uma solução menos gravosa. Ao cabo de porfiados esforços, o editor obteve dos poderes públicos uma concessão: a obra poderia continuar a ser vendida, mas... sujeita a requisição médica apresentada ao livreiro!

Como foi possível que esta entrevista tenha vindo a público?
A explicação é breve. A autorização demorou três dias. Esse lapso de tempo corresponde ao trajecto das provas de texto do jornal para a Censura, daqui para a presidência do Conselho de Ministros e sequente devolução, com despacho aprovativo, para a Censura e de novo para o jornal.
Um Salazar iracundo, remordido de furor, terá concluído que os danos de uma proibição seriam muito maiores que os advenientes de uma autorização. Estava-se a poucos dias das eleições. Egas Moniz ascendera a um pedestal pátrio. Depois da atribuição do Prémio Nobel, quatro anos antes, era glorificado no País inteiro. Até a imprensa situacionista o nomeava "eminente sábio". A notícia de um Prémio Nobel silenciado durante as eleições causaria brado no estrangeiro. Seria difícil, também em Portugal, ocultar por completo o caso. E não obstante a inexistência de uma fiscalização eleitoral e da expedita acção dos legionários incumbidos das já rotineiras "chapeladas", podia acontecer algo de imponderável...
Restava oficiar à polícia política no sentido de reduzir quanto possível os “estragos”. E para uma polícia política parecerá sempre estranha a expressão “quanto possível”.
Tudo é possível, desde que haja uma ordem superior.

O caso da entrevista de Egas Moniz ao jornal República encerraria, ao princípio da tarde de 28 de Outubro de 1953, com um acto de inexcedível vileza.
Quando a decrépita máquina de impressão começa a trabalhar, entram de cambulhada pelo portão das oficinas, na Rua Nova do Almada, pides a granel. Justificam a sua presença com o facto de lhes ter sido ordenado o controlo da tiragem, a qual, declaram, não poderia exceder (um exemplar sequer!) a da véspera. Mas 45 minutos depois, numa fase em que nem um terço da tiragem se encontrava feita, um deles, feição de graduado, berra:
– Chega! Pára a máquina!
Intervém o director Carvalhão Duarte. Calmo. Dirige-se aos intrusos:
– Ou sai daqui a tiragem toda ou não sai nada.
Tipógrafos e redactores encaminham-se em silêncio para o portão. Sem pressas, expectantes, viseiras carregadas.

Saiu a tiragem toda. Mas a máquina bem poderia continuar a imprimir até ao dia seguinte que não faltariam compradores.

2 comentários:

  1. Excelente estória P.F. !

    Esses idiotas da censura eram uns desgraçados que chegaram a coronéis ou lá o que o valha sem nunca terem disparado um tiro na vida... tudo o que sabiam era usar o lápis vermelho.

    :-(

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  2. Não é que seja grave, mas penso que o endereço do República era Rua Nova da Trindade e não Rua Nova do Almada, também no Chiado, mas um pouco mais abaixo. Parabéns pelo rigor do texto! Para que conste como se movia a Censura!
    Parabéns

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