sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Guerra Junqueiro, já naquele tempo...

"Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio,
fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora,
aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias,
sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice,
pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas;

um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem,
nem onde está, nem para onde vai;
um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom,
e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que
um lampejo misterioso da alma nacional,
reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta.

Uma burguesia, cívica e politicamente corrupta até à medula,
não descriminando já o bem do mal, sem palavras, sem vergonha,
sem carácter, havendo homens que, honrados na vida íntima,
descambam na vida pública em pantomineiros e sevandijas,
capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira à falsificação,
da violência ao roubo, donde provém que na política portuguesa sucedam,
entre a indiferença geral, escândalos monstruosos,
absolutamente inverosímeis no Limoeiro.

Um poder legislativo, esfregão de cozinha do executivo;
este criado de quarto do moderador; e este, finalmente,
tornado absoluto pela abdicação unânime do País.
A justiça ao arbítrio da Política,
torcendo-lhe a vara ao ponto de fazer dela saca-rolhas.

Dois partidos sem ideias, sem planos, sem convicções,
incapazes, vivendo ambos do mesmo utilitarismo céptico e pervertido,
análogos nas palavras, idênticos nos actos,
iguais um ao outro como duas metades do mesmo zero,
e não se malgando e fundindo, apesar disso,
pela razão que alguém deu no parlamento,
de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar."

Guerra Junqueiro, 1896.

Enviado pela Contessa

5 comentários:

  1. Não conhecia.Como será que GJ retratou tão clara e eloquentemente o nosso momento presente? Era bruxo ?
    Por minha vontade, agarrava neste texto e enviava a todos os que sentam o rabiosque nas cadeiras do Parlamento.Não resultava em nada mas talvez viessem a sentir vergonha do que não fazem, resolver os problemas do País, com honestidade e bom senso.

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  2. Como poderia ter dito o comentador anterior a mim" Mudam-se as moscas..."

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  3. Completamente de acordo MTH, mas qualquer dia nem as moscas mudam...

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  4. Ok, eu sei de onde e de que época isto vem, e a propósito do quê.

    Mas devo confessar que Guerra Junqueiro, junto com Almeida Garett e os irmãos Passos (por exemplo) fazem parte dos meus ódiozinhos de eleição, desde para aí o 6º ou 7º ano do liceu.
    Chatices de uma pessoa ter uma porcaria qualquer em cima do pescoço e ter o hábito de a utilizar, em vez de dobrar a cerviz reverencialmente a tudo o que aparece à frente...


    Okies, o texto parexe "porreiro pá".
    Mas não é.

    :-((

    Sorry C.>

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  5. Olhem-me bem para esta javardice:

    AOS SIMPLES

    Ó almas que viveis puras, imaculadas,
    Na torre de luar da graça e da ilusão,
    Vós que inda conservais, intactas, perfumadas,
    As rosas para nós há tanto desfolhadas
    Na aridez sepulcral do nosso coração;
    Almas, filhas da luz das manhãs harmoniosas,
    Da luz que acorda o berço e que entreabre as rosas,
    Da luz, olhar de Deus, da luz, benção d'amor,
    Que faz rir um nectário ao pé de cada abelha,
    E faz cantar um ninho ao pé de cada flor;
    Almas, onde resplende, almas onde se espelha
    A candura inocente e a bondade cristã,
    Como um céu d'Abril o arco da aliança,
    Como num lago azul a estrela da manhã;
    Almas, urnas de fé, de caridade e esp'rança,
    Vasos d'ouro contendo aberto um lírio santo,
    Um lírio imorredouro, um lírio alabastrino,
    Que os anjos do Senhor vêm orvalhar com pranto,
    E a piedade florir com seu clarão divino;
    Almas que atravessais o lodo da existência,
    Este lodo perverso, iníquo, envenenado,
    Levando sobre a fonte o esplendor da inocência,
    Calcando sob os pés o dragão do pecado;
    Benditas sejas vós, almas que est'alma adora,
    Almas cheias de paz, humildade e alegria,
    Para quem a consciência é o sol de toda a hora,
    Para quem a virtude é o pão de cada dia!
    Sois como a luz que doura as pedras dum monturo,
    Ficando sempre branca a sorrir e a cantar;
    E tudo quanto a mim há de belo ou de puro,
    - Desde a esmola que dou à prece que eu murmuro
    É vosso: fostes vós o meu primeiro altar,
    Lá da minha distante e encantadora infância,
    Desse ninho d'amor e saudade sem fim,
    Chega-me ainda a vossa angélica fragância
    Como uma harpa eólia a cantar a distância,
    Como um véu branco ao longe inda a acenar por mim!



    A "coisa" continua, mas vou poupar-vos...


    Luís de Gôngora, volta, estás perdoado...

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