A mulher de Afonso André
Pêro Anes pousou a caneca de vinho sobre a mesa de carvalho.
Os seus olhos percorreram a assistência, suspensa das suas palavras e repetiu a pergunta:
“Querem ouvir da justiça que el-rei fez na mulher de Afonso André, mercador honrado, morador em Lisboa?”
Pêro Anes tinha fama de contador de verdades.
Era grande a sua credibilidade, pelo menos entre os frequentadores, da taberna onde bebia todos os dias e porque não dizê-lo, todas as horas?
Se os tempos fossem outros talvez alguém se lembrasse de perguntar como sobrevivia Pêro Anes que mulher não tinha, trabalho não fazia, morar não se sabia onde, mas que contava bem histórias, contava.
Às vezes belas, outras trágicas como esta que agora se prepara para contar.
Mas se trágica pode ser considerada para os nossos dias não era assim entendida naqueles tempos.
Mas deixemo-nos de comentários e ouçamos Pêro Anes, que já aclara a voz, pigarreando, mais para silenciar os ouvintes do que por necessidade fisiológica.
“Andava Afonso André justando na Rua Nova – como era costume quando os reis vinham às cidades, costume que permitia que cidadãos e mercadores se entretivessem em torneios com os nobres da corte real em justas de festa.”
O silêncio que dominava a sala deu às moscas um momento único de glória pois o seu zumbido foi rei e senhor por instantes, mas logo Pêro Anes continuou depois de dar um pequeno gole na caneca já quase vazia de vinho com água, refresco lhe chamavam naqueles tempos.
“Houve el-rei informação certa de que a mulher de Afonso André lhe fazia maldade e entendeu que era tempo de a achar e tomar em tal obra” – diríamos nós hoje apanha-la com a boca na botija, ainda que não nos pareça que tal facto justificasse o castigo que el-rei lhe mandou aplicar, mas não esqueçamos que se tratava de D.Pedro I, aquele que por amor, Inês rainha tornou, ainda que depois de morta – “e tomaram-na e com ela também aquele com quem a culpavam.”
“Mais vinho” – exigiu Pêro Anes e logo uma nova caneca lhe chegou às mãos e quase milagrosamente lhe subiu aos lábios.
Enquanto bebia, Pêro Anes, olhava a assistência presa das suas palavras.
Propositadamente prolongou o silêncio e um jovem, de grenha arruçada, não resistiu “E que fez el-rei a essa…essa…
“Pois el-rei mandou-a queimar a ela e degolar a ele” – disse Pêro Anes -” mas o interessante da história não está na justiça de el-rei que foi justa!”
Olhou em redor como que a ver se alguém se atrevia a duvidar da decisão real.
E perante o silêncio continuou:
“Enquanto tudo se passou o marido, Afonso André, continuava na justa e quando disto soube correu a el-rei queixando-se do que lhe havia feito, mas el-rei mal o viu e antes que ele falasse pediu-lhe alvíssaras do que mandara fazer, dizendo que já o tinha vingado da aleivosa de sua mulher e do que lhe punha os cornos e que melhor sabia ele quem ela era do que ele. "
Calou-se Pêro Anes.
Olhou a assistência que parecia digerir as palavras finais de el-rei, lentamente alguns começaram a falar, depois levantou-se um vozear que não nos permite perceber que posições tomavam os ouvintes, mas estamos em crer que, dada a época, poucos seriam os que não aplaudiam a justiça de el-rei D. Pedro.
Contos do Feeling Estranho
quinta-feira, 21 de maio de 2009
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Prendeu-me a narrativa e a forma.Em suma, gostei.
ResponderExcluirAgora o Conto Histórico. O Feeling em mais um tipo de Conto, e desta vez com maestria.
ResponderExcluirAté o vocabulário e o ambiente se adaptam à temática.Muito bom.
Um deslumbre. :-)
ResponderExcluirMuito obrigado.