que admiro há décadas,
esteve no último fim de semana em Portugal.
Embora correndo o risco de me considerarem desmesurado, sempre declaro: Morin é, a uma escala mundial, o maior pensador vivo.
Não encontro outro espírito tão polivalente, tão inventivo, repartindo o seu imenso trabalho criador por áreas múltiplas, da biologia aos mitos culturais, dos fenómenos sociológicos como o cinema e os media à ecologia e à cibernética.
Um Leonardo da era moderna.
Passou uma boa parte do século XX a inventar as reformas indispensáveis à sobrevivência da humanidade.
Agora em Viseu (porque o colóquio em que participou teve por cenário os 30 anos do Instituto Piaget), o filósofo nonagenário concentrou-se no ensino, cuja «reforma radical» defendeu, apontando alternativas que possibilitariam aos jovens enfrentar os desafios do presente e do futuro.
«O ensino», disse, «continua separado de uma visão global do mundo exterior.
Essa visão global é indispensável à compreensão do que está a passar-se, a sociedade precisa de um saber não compartimentado, mas transversal.»
Desde cedo me seduziu na obra de Morin (em parte significativa traduzida para português) o seu pensamento planetário, as reflexões universalistas sobre a natureza e a condição humanas, o cepticismo angustiado de incertezas com que conceptualiza as contradições do mundo e, em especial, aquele olhar herético, provocador, que arrasa tudo quanto são ideias feitas.
Sabe-se que um filósofo jamais poderá gerar unanimidades.
Todavia, Morin converte essa premissa num exercício desafiantemente revolucionário, cumprido de cada vez que exterioriza uma ideia.
Até os leitores fiéis que por hábito lhe tributam uma atenção admirativa não conseguirão evitar objecções e até dissidências irremíveis.
Ou quase... Já me aconteceu que, lendo-o, em determinado passo me desvie do livro e murmure: «Oh, Edgar! Aqui não estamos de acordo! Desculpa, mas...»
Anos depois, um acontecimento de natureza diversa projecta-me para o conceito por mim renegado e transijo, penitente: «Bem, Edgar, é possível que tenhas razão. É mesmo muito possível...»
Morin está sempre na contracorrente de tudo, a começar, naturalmente, pelas "verdades irrefutáveis", as "tradições inquestionáveis", os dogmas políticos, religiosos, filosóficos...
Quem não o conheça e mostre interesse em dar uma espreitadela ao seu universo transdisciplinar poderá optar por "Os Meus Demónios" (ed. Europa-América), uma espécie de breviário de pensamentos rebeldes, de convicções e dúvidas ancestrais.
Saímos do livro com a impressão de termos percorrido um grandioso fresco histórico de uma vida, uma vida de ideias.
Ideias que, por seu turno, como assinala, têm vida própria, porque não existe simplesmente vida biológica: «É por isso que se pode viver, e também morrer, por uma ideia.»
Particularidade desta obra invulgar é a de não se tratar, em rigor, de uma autobiografia, na acepção corrente do termo.
Morin não se cansa de evocar a sua vida fabulosa mas rapidamente abandona os episódios pessoais para iluminar as ideias que os enquadram ou lhes estiveram subjacentes.
Essa rememoração quase sempre magoada principia no próprio nascimento, em circunstâncias trágicas: a mãe ou o filho, um deles teria de morrer no parto.
Milagrosamente, sobreviveram ambos, mas a mãe nunca recuperou, partiu poucos anos depois. Edgar carregaria para sempre o primordial demónio dessa sombra.
Revisita com inclemente lucidez as ideologias e combates que atravessaram o século XX («Que época! Quantas reviravoltas e cegueiras!
Quantas tempestades! Quantos mitos e desmitificações!»). Tempos de sucessivas resistências: primeiro, ao nazismo, depois, ao estalinismo.
A excomunhão sofrida em 1951, por parte do PC francês, trouxe-lhe a aversão de muitos companheiros de jornada para os quais o marxismo ortodoxo constituía uma autêntica religião da salvação terrestre.
E foi o primeiro a teorizar sobre um inevitável colapso do império soviético.
Descrente, sempre rebelde, prosseguiu quase sozinho, permanecendo por longos anos em "hibernação política".
Outras linhas de força: o progresso civilizacional indissociável da barbárie, o túnel infindo dos antagonismos: «O pensamento, quando chega às regiões mais profundas da realidade, encontra contradições logicamente insuperáveis.»
Dilacerado por estas contradições, escreve, referindo-se à Alemanha nazi: «Como é que a nação mais culta do mundo produziu uma das piores barbáries universais; como é que o país onde nasceram a música, a poesia, a filosofia que mais me tocam deu origem às ideias que mais me repugnam?»
Cada livro de Morin submerge-nos numa avalancha de interrogações.
Sempre latente, no entanto, a ideia da mudança, da reforma das ideias, de um urgente «começar de novo»..
Aos noventa anos continua a resistir com a rebeldia de quem acredita que o pior de tudo é desistir de mudar o mundo.
Pedro Foyos
Jornalista
Curiosamente, ou talvez não, fala-se sempre da saída de importantes figuras dos diversos PC mas nunca das importantes figuras que lá permanecem.
ResponderExcluirE porque é que tantas importantes figuras, incluindo o maior pensador vivo segundo P.F., terão abraçado, embora renegando mais tarde,os ideais Comunistas?
Costumo comentar os posts e não os comentários mas como a MTH faz uma pergunta, passo a responder.
ResponderExcluirTalvez porque imbuídos do idealismo da juventude resolveram seguir um caminho que, anos mais tarde, verificaram não ser aquilo que eles pensavam.
O que lhe parece como resposta ?
Estranho que a MTH queira mencionar essas figuras que erraram enquanto jovens, o que é natural, mas tão depressa chegaram à idade da razão quiseram corrigir esse desvio.
ResponderExcluir