segunda-feira, 18 de maio de 2009

A Feira do Livro e o problema do Robalo

Nota prévia:
Com o texto seguinte pretende o Autor evidenciar que leva a sério o "espírito da etiqueta". ~
Um Traço Descontínuo é, até nova ordem, ora negro, ora branco.
Ou seja: a tragédia e a comédia convivem intermitentemente.


Finda que está a Feira do Livro de Lisboa e de partida para o Porto, aproveitarei o tempo de viagem para recordar um divertido episódio que em tempos remotos era contado no meio editorial português.
Protagonista: o almirante Henrique Tenreiro, que os jornalistas oposicionistas da época cognomearam "Imperador do Bacalhau".
As novas gerações não saberão quem foi o almirante Tenreiro, o que por um lado é óptimo, mas, por outro, muito ficam a perder porque a personagem em apreço permaneceu quatro décadas no coreto do anedotário nacional.
Anedotas, convém assinalar, sempre contadas em surdina, precavendo-se a proximidade das orelhas espetadas dos bufos do regime.
Os meus compatriotas velhuscos bem se lembrarão de uma delas, histórica, que circulou à velocidade da luz no dia do assalto ao paquete "Santa Maria".
Não cabe aqui fazer a biografia do almirante Tenreiro, tão-pouco desterrar o repositório infindo de anedotas, mas é importante referir que o "Patrão das Pescas", como também era conhecido, ocupou por largo tempo o pódio oligárquico deste país, logo a seguir a Salazar e ao cardeal Cerejeira.
Encarei-o algumas vezes em serviços de reportagem, dele retenho a imagem de um homem ávido de protagonismo, exuberante e garboso, autoritário, ostentando poder.
Onde quer que estivesse e qual fosse o acontecimento cabia-lhe por inteiro a ribalta.
Mais que "patrão das pescas" reinava sobre terra e mar.
Mas foi na condição de "obreiro social" do regime que um dia manifestou o desejo de comprar a totalidade dos pavilhões da Feira do Livro.
O objectivo seria utilizá-los como postos fixos de venda de peixe, distribuídos pelos bairros lisboetas, no âmbito de uma iniciativa de serviço público que o Governo patrocinaria.
Os pavilhões de ferro (largas dezenas), cumpriam os requisitos para um novo e inopinado ramo literário – o da pescadinha e do carapau – função que até ao momento tinha escapado a toda a gente.




Os editores, reconhecendo, já então, o figurino obsoleto das "barracas", interessaram-se pela proposta.
Saltava à vista que um acordo com o "Imperador do Bacalhau" permitiria obter a verba necessária para mandar construir outros pavilhões em novos moldes, mais modernos e funcionais, viabilizando em certa medida o sempre ambicionado rejuvenescimento da Feira do Livro.
Foi nomeada uma comissão negociadora cuja tarefa consistia em demonstrar ao almirante a excelência do produto para o fim da venda do pescado.
Dir-se-ia que as "barracas" haviam sido planeadas de raiz para tal desempenho, mas alguém as desencaminhara para o negócio do livro.
Assim, em terrenos arrabaldinos do Lumiar montou-se um pavilhão-modelo, impecável.
E foi convidado o "Imperador" para a mostra.
Chegou, na manhã do dia seguinte, acompanhado do inevitável e mastodôntico "secretário particular", com o posto de guarda-marinha, mais um civil que carregava uma pesada mala de viagem.
Um minuto depois, resolvidos os cumprimentos da ordem, a perplexidade total ao ver-se o recheio da mala.
Eram livros. Muitos exemplares de um só livro.
Tratava-se, afinal, de um gesto de cortesia.
A obra, "O Problema da Pesca", do almirante Tenreiro, oferecida ali a cada um dos presentes, incluindo os serralheiros já aprontados para a desmontagem após o acto.
E com autógrafo!
A seguir, toda a gente comprovou a perfeita adequação da "barraca" para o negócio do peixe.
Encantado, o almirante.
Os bairros iriam beneficiar de mais um inovador serviço público, mais uma magnificente obra social do regime.

De súbito, o "Imperador" deu um estalido com a língua.
Algo o contrariava. E bradou:
– As prateleiras!
Sobressaltou-se a assembleia:
– As prateleiras?! Que têm as prateleiras, senhor almirante?
– Que têm, não. O problema é que não têm.
– Não têm?!
– Ó senhores, não têm profundidade! Não se vê que lhes falta profundidade?
Explicou: as prateleirinhas do fundo não tinham espaço para o robalo.
– O robalo – esclareceu gravemente – é fundamental. Só na última campanha representou trinta por cento do pescado graúdo. Passou à frente da garoupa.
Um livreiro argumentou com esperteza:
– Veja, senhor almirante, as prateleiras dão para o peixe miúdo, carapau, sardinha...
O "Imperador" sentenciou:
– Os senhores têm de perceber uma coisa. Não podem arrumar o carapau e a sardinha a pino como se fossem livros. Estas prateleiras não dão para peixe, seria preciso refazer a estrutura. Um trabalho para cima de um dinheirão. O negócio faz-se, faz-se sim senhor, mas, tenham paciência, por metade do preço. Estamos a tratar de uma obra social!

O negócio não se consumou. O almirante, inflexível, manteve a oferta a metade. E lá perdeu a cidade a planeada rede de venda de peixe. E perdeu a Feira do Livro a oportunidade da sua renovação, sucessivamente adiada até este ano.





Pedro Foyos
Jornalista

7 comentários:

  1. Pois é, o Homem tinha destas coisas mas cheguei a comer do peixe cuja distribuição alargada ele organizou.

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  2. Aqui temos um Pedro Foyos mais humanizado, e com menos frieza de profissional, o que , no meu entender , resulta num texto mais caloroso e atraente.

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  3. Cá na terrinha gosto mais de Dourada...

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  4. Este Tenreiro era motivo de mais anedotas do que actualmente muitos dos Ministros do Governo.
    Também pouco mais se podia fazer para além de contar anedotas ou ir ver as Revistas do parque Mayer.

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  5. "...Vem o Tenreiro, e o António,
    um é peixeiro
    o outro é campónio..."
    do hino da 'Bufa', versão alternativa :-P


    P.S.
    Não posso assegurar, mas sempre tive ideia que o 'António' era o idiota do Cerejeira...

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  6. Penso que o António seria o Salazar ( António de Oliveira Salazar, o dito Campónio).

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  7. Nah...
    Esse era um autêntico James Bond.
    Pelo menos a julgar pelo tele-filme supostamente bigráfico da SIC.

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