O quarto antigo, a mobília com mais de meio século de existência, carcomida pelo bicho da madeira.
Em cima da cómoda, as incontáveis molduras com as fotografias dos filhos e dos netos, cuidadosamente dispostas, narravam a sua história, retalhos de uma vida inteira.
Num canto do quarto, a máquina de costura, relíquia digna de figurar num qualquer museu de lavores.
Sentava-se na cadeira, os pés no pedal da máquina e enfiava as linhas.
O cabelo tardiamente cinzento, entrançado até meio das costas.
Os olhos mouros, vivos e inquisidores, semicerrados no esforço de enfiar as linhas na agulhas.
A boca num eterno sorriso trocista e simultaneamente terno, enquanto tentava sem sucesso contagiar a Neta com o seu gosto pela costura.
Desenrolava as histórias num pesponto perfeito.
A espaços, o desabafo crónico que a Neta ouvia desde que se conhecia: - "Já devo anos à cova!...". No movimento compassado do pedal, a vida contada em linha recta, sem nunca se perder, num relato onde se adivinhava no avesso a vida difícil.
Nasceu no campo e ali casou e teve filhos, um atrás do outro, que amamentava debaixo das árvores, nas sombras encontradas nos arrozais, durante o descanso consentido pelo patrão.
Foi viver para a cidade, a procurar uma vida melhor.
Teve mais filhos, um atrás do outro.
Lavou roupa de famílias alheias, trabalhou nas fábricas, o apito das seis da tarde a gritar que era o momento de fazer o jantar, a magra ceia da prole, iludida com artes de prestidigitador.
Nunca foi à escola, mas o que lhe faltou em oportunidades, sobrou-lhe em teimosias.
Decifrou sozinha o encadeamento das letras e embrenhou-se nas selvas e savanas do planeta, na leitura dos fascículos do National Geographic, paixão que lhe vinha não sabia de onde.
Observava atentamente o mundo pela televisão e reinventava conceitos, que devolvia à família com o seu sorriso trocista, num glossário que ficava para a eternidade: os filmes "ortográficos", que recusava ver mas que descrevia com detalhe, o "taliban" instalado na casa de banho, quando o corpo lhe vergou a teimosia e lhe dificultou a mobilidade...
À vontade férrea de aprender tudo contrapôs sempre a vontade de desistir.
Nos momentos difíceis em que o chuleado da vida escorregava pela borda do tecido, vinha-lhe o desejo de partir.
Numa consulta médica, enquanto lhe prescreviam as mezinhas para as maleitas da idade, exigiu ao médico a receita da eutanásia, panaceia que tinha visto num programa de televisão sobre a Holanda.
Porque "devia anos à cova"...Alinhavava a vida, mas deixava marcas visíveis na existência dos outros.
Nas memórias da Neta permaneciam os "mata-fome" comprados na padaria para o intervalo grande da escola.
As corridas pelo quintal, sem a dentadura postiça, para lhe lambuzar a cara num "beijo molhado" que deixava a Neta num pranto de raiva e frustração durante horas.
As tendas de índios montadas com cobertores e molas de roupa, entre a cama e as cadeiras da sala, que lhe deixavam a casa num desassossego constante.
E as eternas tertúlias junto à máquina de costura, na derradeira tentativa de cativar a Neta com a arte das agulhas e linhas.
Um dia, a Neta fez-lhe a vontade.
Sentou-se no canto do quarto, os pés no pedal da máqina de costura, e enfiou as linhas.
Escolheu os bocadinhos de tecido um a um, enquanto a Avó desenrolava as histórias, mais uma vez, uma a uma, sem perder o fio à meada.
Costurou uma almofada em patchwork e a Avó adormeceu num sono simples, a longa trança deitada na cama.
A Neta pousou-lhe com suavidade a almofada no rosto e pressionou.
E a Avó partiu, por fim...
Maktub
terça-feira, 19 de maio de 2009
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"No movimento compassado do pedal, a vida contada em linha recta, sem nunca se perder, num relato onde se adivinhava no avesso a vida difícil."
ResponderExcluir...talvez a frase mais bonita que pude ler aqui nos microcontos.
Parabéns, MaktubA.
Ora bem, eu já fui criticado por um final infeliz de um dos meus contos.Entendo que tal nada tem a ver com a consistencia, valor e apreciação dos ditos.
ResponderExcluirE por isso, no caso presente, aceito e concordo com a Moira (encantada) de Trabalho.
Disse.
A tua vida é um retalho,
ResponderExcluirCosido entre os retalhos da vida de alguém.
Vives a vida que é tua
E tua é a outra também.
E nessa manta da vida,
Nos retalhos que ela contém,
A tua vida já não é só tua.
Trazes nela cosida o retalho da vida de outrém.
Estou boquiaberto... de 'emaravilhamento'. :ª)
ResponderExcluirMuitos parabéns, Maktub !
Muito bem escrito, pleno de simbolismos e com um final que nunca me passou pela cabeça...
ResponderExcluirMuito bom, mesmo!
Bem escrito, sem dúvida, mas...não gosto do final. "...enquanto a Avó desenrolava as histórias, mais uma vez, uma a uma, sem perder o fio à meada." Muito pouco senil, como se vê, e não há sofrimento físico suficiente para justificar a eutanásia. Nah.....
ResponderExcluirDifícil agradecer os elogios que nos dão motivação para continuar.
ResponderExcluirDifícil não agradecer e permanecer em silêncio como se os elogios nada nos dissessem.
Difícil comentar testemunhos anónimos, que em poesia dizem tudo o que está no avesso deste Micro.
Difícil escrever MicroContos, porque transmitir uma ideia ou um afecto que vive "cá dentro" será das tarefas mais complexas da comunicação humana.
Mas estes difíceis todos ficam mais fáceis, quando vos leio. Vou continuar a escrever. Até já!
Até já, Maktub, congrats !
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