quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Reflexos condicionados

História desconhecida
de um livro do Doutor Pavlov
proibido em Portugal

no tempo da Ditadura

Ao chamar a este palco, na sexta-feira, o célebre cientista Ivan Pavlov, emergiu-me à memória um episódio pitoresco que testemunhei no tempo da Ditadura. Trabalhava então no único diário português que estoicamente se assumia oposicionista ao regime salazarista. Jornal flagelado pela Censura como nenhum outro. Em contrapartida, essa condição insurgente gerava cumplicidades admiráveis em todos os sectores da vida nacional. Por exemplo, a que permitia conhecermos com a antecedência de um ou dois dias as obras que a Censura havia decidido mandar retirar do mercado livreiro. De facto, o primeiro organismo não oficial conhecedor das proibições era a Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL), onde alguns destemidos funcionários se apressavam a passar-nos a informação. Jornalistas de outras publicações não deixavam de ser privilegiados nesse rotineiro secretismo informativo, mas sei que o meu jornal era sempre o primeiro.
A Censura cometia amiúde a bendita precipitação de transmitir formalmente, com registo protocolar, as proibições, quando os livros destinados ao Index ainda se encontravam nas livrarias. Apenas no dia seguinte ou dois dias depois apareciam nos estabelecimentos os agentes da polícia política (PIDE) incumbidos do impiedoso "arresto". Aproveitávamos esse lapso para de imediato corrermos aos livreiros amigos, que por regra desconheciam ainda a próxima visita dos confiscadores. E abasteciamo-nos da mercadoria em vias de extinção. Evoco emocionado o livreiro lisboeta António Barata, na Avenida de Roma, a mais discreta pessoa que conheci até hoje e que tantas vezes me guardou, nos esconsos da lojinha, os livros proibidos (em número de dezenas). Preservo-os em "lugar de honra" na minha biblioteca. Cada um tem a sua história e na soma representam um trecho dramático da nossa História.

Um dia, toda a redacção ficou atónita com a notícia secreta de nova proibição. O autor da obra interdita dessa vez aos olhos dos portugueses era um dos mais famosos cientistas do século, Prémio Nobel da Medicina em 1904: Ivan Pavlov. Maior a estupefacção ao saber-se que o teor "subversivo" do livro respeitava apenas às investigações do cientista no domínio da Fisiologia. Deste acto censório inferia-se forçosamente que a proibição não resultava da natureza da obra, antes da "má-natureza" do autor, o qual, não sendo político, carregava contudo o labéu de uma nacionalidade maldita: a então União Soviética.
Era a primeira vez que assistíamos a tal procedimento aplicado a um livro. A prática habitual, bem nossa conhecida, confinava-se ao noticiário e a artigos. Os nomes próprios com sonância russa, fossem ou não conhecidos, atraíam instantâneamente o lápis azul. Mais hilariantes eram os casos dos nomes cortados por causa dessa sonância, apesar de os autores não procederem de países comunistas. Mas... ao ouvido eram suspeitos.

Ao reler a minha crónica de sexta-feira dei comigo a meditar sobre as leis fisiológicas de Pavlov aplicadas aos censores portugueses durante a Ditadura. Pavlov descobriu – marco histórico da Ciência – que os reflexos condicionados (também designados aprendidos) formados no córtex cerebral são produzidos por um estímulo inicialmente sistemático, o qual resulta aprendido.

O gráfico aqui reproduzido ajudará a apreender a tese, bastando substituir mentalmente a cabeça do cão pela cabeça do censor.
Indispensável, para o êxito da experiência, um lápis azul sobre a mesa.
Vejamos: o cão produz saliva quando lhe é apresentado um alimento, circunstância que serve para ajudar a ingestão do alimento.
Coloquemos agora o Doutor Pavlov no lugar da campaínha. O reflexo inato do censor é cortar, circunstância que serve para manter o País livre da subversão da opinião pública. Mas o censor neófito nunca cortou nomes russos, não os distingue. Então, o Doutor Pavlov vai murmurando ao ouvido do censor nomes russos e dá-lhe um biscoito de cada vez que ele reage com o lápis azul.
Ao fim de algum tempo, o reflexo fica aprendido. De cada vez que o censor ler um nome russo, ou vagamente parecido com isso, logo o corta com raiva e abundante salivação, mesmo sem o presentinho do biscoito.

3 comentários:

  1. A Barata... saudades. Aquilo ficava a 300 metros do Técnico.
    Arranjava-se lá (quase) tudo o que queríamos ler.


    (Senão íamos à Livrelco ou coisas do estilo.)

    Para o "resto" ia alguém a Paris ou a Londres, e depois "improvisava" nas fronteiras (a espanhola e a portuguesa) para não ser apanhado/a com tudo o que trazia...

    :-)

    ResponderExcluir
  2. Uma história muito interessante e muito bem contada que mostra às pessoas mais novas, como eu, o que era a Censura e a estupidez de muitos, todos?, os censores.

    ResponderExcluir
  3. É este tipo de estória anónima que deveria passar para as gerações seguintes e vai desaparecer completamente...

    ResponderExcluir