quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

XII - Quase um brunch

“ Um café duplo bem forte, dois ovos mexidos com bacon, um copo de sumo de laranja natural e uma torrada fina e com pouca manteiga.”
Os grandes olhos, muito azuis, abertos de espanto perante o pedido pantagruélico, foi a única reacção da Dona Rosa, que se apressou, atrás do balcão, a satisfazer as minhas necessidades alimentares.
A barba por fazer, os olhos raiados de vermelho e o ar ensonado devem-na ter alertado que hoje o clima não estava favorável às suas investidas e considerações filosóficas.

Na véspera, ou nesta madrugada, melhor dizendo, acabara por me deitar pelas seis da manhã e mesmo as duas ou três horas que podia ter aproveitado para um sono reparador, tinha-as passado às voltas na cama, entremeando imagens de velhos retratos do Papa Hemingway com cenas de touradas do Ordonez e do Dominguim, fotos antigas dos guerrilheiros a descerem da Sierra Madre, tesouros de piratas, o Comendador vestido de Capitão Gancho e, para não ser tudo mau, a Foxy Lady a entrar-me quarto adentro e a afirmar num inglês perfeito
“A man can be destroyed but not defeated”.

Quando de manhã me levantei, mais cansado do que se tivesse passado a noite em jogadas amorosas, preparei uma refeição distraída para o Leónidas que, tendo-se apercebido da minha ausência, adoptou um ar ofendido e foi deitar-se lá longe na marquise não se dignando acompanhar-me à porta, como é seu hábito, quando me ouviu preparar-me para sair e despedir-me com um soturno”Té logo…”

Mal pus o pé no patamar do meu andar, vi que a porta em frente se abria e a minha vizinha de andar, ainda de roupão e com ganchos no cabelo, abriu a porta a medo, como é seu hábito e costume e cumprimentou-me com timidez.
“ Bom dia Nuno…espero não o incomodar…”
Esta minha vizinha nunca me mereceu mais do que um olhar breve e distraído.
De idade indefinida, entre os vinte e os trinta anos, não sei dizer se é feia ou bonita, interessante ou um verdadeiro estafermo.
Sei que é designer e trabalha em casa, daí o desarranjo permanente, os roupões, as chinelas, o cabelo desarranjado, a indefinição do rosto a que uns óculos de lentes grossas transmitem o ar estereotipado da marrona da turma.
Chamou-me a atenção a caixa que segurava nas mãos.
“ Ontem vieram trazer-me esta caixa…disseram que era para si…pediram-me que lha entregasse…”
Era quase como se me tivesse a pedir a desculpa.
“ Não fiz mal, pois não?”
Embora já tivesse tido a minha dose de mistérios anual, e não me querendo dispersar por mais coisa nenhuma, tentei responder de forma simpática embora algo lacónica.
“ Fez muito bem. Eu é que agradeço…disseram-lhe o que é ?”
“ Não, também não perguntei…desculpe sim?”
e esgueirando-se para a protecção da sua casa, julgaria ela que eu mordia? deixou -me, no meio do patamar, com a caixa de papelão nas mãos.
Sopesei-a. Parecia ter livros ou papel…nada de bombas relógio, como a minha imaginação delirante chegou a pensar.
Abri a porta do meu apartamento e coloquei-a no chão junto à mesma.
Leónidas, lá de dentro deu sinal de que ouvira o ruído e tomara a devida nota.
Mas eu é que não ia cair naquela nova armadilha, abrir a caixa, analisar o seu conteúdo, desfocar, de novo, o meu pensamento que , agora, queria bem concentrado e centralizado no manuscrito de Hemingway…

E assim poucos minutos depois, estava sentado na “Estrela do Bairro” a aguardar o lauto pequeno almoço, que me iria fazer voltar ao mundo dos vivos.
O cheiro a bacon frito, misturado com o do café, era um agradável presságio disso.
Quando os diversos pratos, copo e chávena fumegante me foram colocados à frente por uma, surpreendentemente, silenciosa Dona Rosa preparei-me para atacar o repasto.

Senti, então, uma forte palmada nas costas.
“ Camarada Nuno, com tanta fome que há no mundo…”

3 comentários:

  1. Este episódio, hoje, encheram-me as medidas: o brunch, a Dona Rosa sem dizer palavra e a frase final acompanhada de palmada nas costas...sim senhor. To be continued

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  2. Delícia, quem me dera saber e ter o fôlego p'ra escrever assim...

    :-)

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  3. "...com tanta fome que há no mundo", devia pagar direitos de autor...
    Agora que a história tem fôlego, lá isso tem!

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