Laura tinha terminado uma relação tempestuosa.
Do género “é tão bom quando fazemos as pazes”.
Pela primeira vez não tinha sido ela a acabar,
embora soubesse desde o início
e tivesse comprovado no meio e no próprio fim,
que não queria “aquilo”.
“Aquilo” era a destruição de duas pessoas.
Durante os seis meses seguintes entregou-se a si própria.
Parou para pensar e repensar a sua vida.
Trabalho, muito. Amigos, quanto baste.
Saídas, muito seleccionadas. Família, em doses bem racionadas.
Era como se tivesse feito um plano de recuperação.
Chegou a fazer fins-de-semana de silêncio:
telefone desligado, sem música, sem jornais, sem livros,
sem trocar uma palavra consigo própria.
Chegou a fazer jejuns e clisteres como se quisesse purgar-se.
Num desses fins-de-semana, a meio da tarde de domingo,
não aguentou e chorou convulsivamente durante horas.
Adormeceu cedo e dormiu horas sem fim.
No dia seguinte acordou com uma energia que julgava perdida.
Atirou-se ao trabalho e a meio da tarde
marcou viagem para Nova Iorque.
Telefonou à amiga de sempre a avisar que daí por uns dias aterrava.
Pela primeira vez iria sozinha.
Antecipava a anima daquela cidade e o efeito que lhe produzia,
tudo era reduzido à verdadeira proporção.
Antecipava a cumplicidade com a amiga, o chorarem e rirem,
o poderem dizer parvoíces sem crítica de terceiros,
os “cocktails” de fim de tarde no terraço a abraçar o Empire State.
Depois de aterrar, quando entrou no táxi
sentiu um nó na garganta que depressa desatou.
À medida que o “skyline” de Manhattan se desenhava à sua frente,
a emoção fê-la sentir-se poderosa em relação a si própria.
Durante uma semana andou quilómetros sem fim,
quase sempre sozinha, reviu o que já conhecia,
viu o que não tinha visto de outras vezes, entrou e saiu de lojas,
experimentou sem comprar.
Juntava-se à amiga no final do dia.
Numa manhã combinou encontrar-se com um amigo
que estava de passagem por Nova Iorque.
Demoraram-se no MOMA.
Em cima da hora resolveram ir ao cinema
ver um programa “non stop” de curtas-metragens
de um festival gay.
Não conversavam muito.
Funcionava a cumplicidade de muitos anos.
No final da tarde decidiram ir tomar um aperitivo no Soho
e jantar por lá.
Foram para uma fila de táxis.
Enquanto esperavam, Laura observava a mulher
que tinha à sua frente, uma nova iorquina de Park Avenue,
forrada de dólares e que afinal esperava o motorista.
Estava tão perto dela que conseguiu ver-lhe
uma cicatriz por trás da orelha.
A cara não tinha nem rugas, nem expressão,
mas tinha tempo suficiente para isso.
Quando chegaram ao Soho, escolheram a esplanada do Barolo
e ali ficaram até anoitecer, a observar as pessoas, a rua,
a sentir a energia da cidade.
Laura levou a mão à cara e lembrou-se da nova iorquina cicatrizada.
Sentiu-se linda com as rugas dos últimos meses.
Respirou fundo e o amigo deve ter-lhe visto a tranquilidade na cara:
“Estás bem?” perguntou-lhe.
Laura respondeu-lhe: “Estou muito bem”.
E sentiu a magia daquele momento.
Regressou a casa a pé e soube que o luto estava terminado.
Pinta
terça-feira, 5 de maio de 2009
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Contos urbanos, mulheres especiais, grandes cidades,ambientes sofisticados, como é que eu poderia passar sem isto?
ResponderExcluirObrigado Pinta.
Esqueçam os requintes e as cidades estrangeiras, falem das mulheres e homens com quem todos os dia nos cruzamos. Da sua luta diária, dos seus problemas.
ResponderExcluirEscrevam sobre este país entregue na mão de vampiros e exploradores.Dos nossos ideais, dos nossos sonhos.
MTH no seu melhor e com alguma razão, o que não invalida o bom nivel do conto.
ResponderExcluirQue Pinta não se intimide.
Certo?
As pessoas, todas as pessoas, t~em todo o direito de escolherem o temas sobre aquilo que gostam, que sabem, escrver. Temas urbanos ou rurais, eróticos ou infantis, sobre futebol ou poesia. A isso chama-se liberdade criativa ou, simplesmente, Liberdade.
ResponderExcluirMas talvez a MTH tenha saudades da Arte Oficial em que a Nomenklatura escolhia as temáticas, como ela, parece, querer continuar a fazer.
Ela que escreva, vamos a ver se presta.
ResponderExcluir(e não vale plagiar o Kadaré, nem o Dimitrov, o Ehrenburg ou a mulher do Mao...)
Contos da vida normal, Pinta, feeling good ! :-)
Estou pensando promover um abaixo assinado para requerermos a presença de MTH como autora de um mini conto, óbviamente de tema livre desde que os comentadores de serviço se comprometam a um rigor dentro dos padrões habituais na própria e sem "rancores politicos" imprópios nesta nossa capoeira!!!
ResponderExcluirValeu ?
Devem andar distraídos porque já foram publicados Contos meus que mereceram aliás os vossos importantes comentários.E então que liberdade é essa que não me deixa emitir a minha opinião?
ResponderExcluirEu cá gosto é de ficção.
ResponderExcluirGd Malha!
ResponderExcluirGd Pinta!
Gd Nice!
Não sei se perceberam, mas amei!
Grato.
Ficção ou não, "plot" e escrita de primeira!
ResponderExcluirEsta "Pinta" anda a produzir muito(s) e excelente(s) pinto(s)...
Mas, só uma pergunta, inocente, claro: porque não fazer desenrolar (um)a acção em Carrazeda de Ansiães???!!!
Sem desprimor, óbvio...
Talvez porque Carrazeda de Ansiães comparada com Nova Iorque seja um bocejo do camandro ??
ResponderExcluirJust a tought... :-P
E daí...talvez seja mesmo de alguém (eu não !!!) situar um microconto entre Carrazeda de Ansiães e Fornos de Algodres... :-)
ResponderExcluirFeelings amargos bem descritos num conto urbano bem desenvolvido pela Pinta, como já vem sendo hábito :-)
ResponderExcluirBarolo,Soho, Skyline, Festival Gay, MoMA,Cocktails de fim de tarde, Empire State ou como criar um ambiente com meia dúzia de palavras.
ResponderExcluirA Pinta de parabéns, e nós todas,