Estava em muito maus lençóis, diziam-lhe.
Na cave daquela esquadra em Firenze, Vicenzo Peruggia não podia negar a posse do quadro que ele mesmo havia roubado dois anos antes.
Pelo contrário, até fazia questão de se mostrar com ele, perante a comunicação social aterrada à porta, confiante que haveria de ser considerado um herói pelo seu povo.
Sabia, porém, que a polícia e os tribunais teriam seguramente opinião contrária.
Por sua causa havia um rol de escandalosas detenções, entre as quais um poeta de nome Guillaume Apollinaire e um jovem pintor espanhol chamado Pablo Picasso.
Nem de um, nem de outro alguma vez ouvira falar.
Era-lhe dito agora que ambos estiveram sob fortes suspeitas de serem os autores do roubo.
E isso, mais do que o próprio delito, estava a jogar contra si nas acusações que lhe eram feitas.
Vicenzo era um homem calmo, pausado.
Parecia saber muito bem o que estava ali a fazer e, melhor, ainda, como sair daquela situação, totalmente imune.
Não planeara ser capturado mas previra forma de ser deixado em paz pelas autoridades, apesar do crime que cometera.
Durante o interrogatório, onde estavam presentes, além do chefe da esquadra e do detective da Interpol encarregado da investigação, também dois especialistas em arte renascentista, nunca se mostrou atormentado.
Não suava, tinha gestos calmos.
Pediu um café e perguntou se podia fumar.
Permitidas as cedências, Vicenzo concordou em contar toda
a história. A verdade seria, acreditava, o seu passaporte de saída.
Iniciou a declaração com os detalhes práticos do furto: trabalhava no museu há cinco anos, teve tempo e oportunidade para estudar a melhor forma de retirar o quadro da exposição driblando toda a segurança. Depois, veio a resposta ao porquê.
E aqui fez uma longa pausa como que para reforçar bem a sua
intenção. Não o fizera por dinheiro.
Nunca lhe passara pela cabeça vender o quadro.
Pelo contrário, pretendia oferecê-lo ao povo italiano, para ele o verdadeiro e único herdeiro da tela. Este estranho altruísmo não convencia os seus interrogadores, é claro.
Mas as palavras que se seguiram vieram colocá-los numa desconfortável posição de cedência e Vicenzo pretendia jogar com isso a seu favor.
Ainda adolescente Vicenzo descobrira no sótão da sua casa, morada de sempre da família, uma espécie de diário de um seu antepassado.
Estava manuscrito de uma forma curiosa: da direita para a esquerda.
Aquilo chamou-lhe a atenção e durante semanas, no recato do seu quarto, com a ajuda de um espelho decifrou todo o conteúdo do pequeno livro.
Ao ler os apontamentos finais percebeu que tinha em mãos
uma tarefa muito difícil mas que seria, sem dúvida, sua.
Os anos seguintes passá-los-ia a estudar arte, pintura, história e, por fim, línguas estrangeiras. Fazer-se funcionário do museu foi o último passo nesta muito bem planeada missão.
E tudo se devia ao esforço de repor a verdade; a verdade
que o seu antepassado tanto se esforçara para ocultar.
Contou, então, que Marcantonio, autor do diário, teria sido um pintor talentoso mas que nunca alcançou fama e reconhecimento, como outros do seu tempo.
Trabalhou como ajudante para muitos artistas, tendo-se especializado na técnica do Sfumatto. Sabe-se hoje que muitos artistas do renascimento pintavam as figuras mais importantes das telas e dos frescos e deixavam aos seus discípulos a tarefa de pintar figuras secundárias e fundos. De outra forma não poderiam ter conseguido terminar tão extensas obras.
Marcantonio era, então, um pintor de “fundos”.
E sucedeu que numa pequena tela, um retrato, no qual tinha ficado incumbido de pintar a paisagem de fundo, cometeu um erro e salpicou de tinta verde
o rosto já terminado da figura retratada.
Durante os três anos que se seguiram, Marcantonio escondeu
a tela do seu mestre, desviando-lhe a atenção para tantos
outros trabalhos já iniciados, e este acabava por se distrair.
E durante esse tempo treinou todas as noites, à luz de velas, escondido do mestre, até se sentir capaz de corrigir a nódoa que tinha produzido.
Quando finalmente terminou, apesar de convicto da técnica, sentia que a fisionomia da personagem tinha qualquer coisa de diferente, difícil dizer o quê… qualquer coisa de enigmático que não correspondia à recordação que tinha do original, sob a mancha verde.
Mas não teve outra opção senão entregar o quadro ao seu mestre, dando-o como terminado e este, tão esquecido que estava de o ver, também nada notou.
Cinco horas depois da sua detenção, Vicenzo Peruggia abandonava, livre de acusações, a esquadra de polícia.
Era madrugada alta de uma fria noite de Dezembro e os repórteres já lá não estavam; pôde assim, seguir as rigorosas indicações que os detectives o obrigaram a juramentar, pela alma do seu antepassado e por quem se dera a tanto trabalho: desaparecer de Firenze sem deixar rasto e nunca divulgar a ninguém o que acabara de se passar naquela sala de interrogatório.
A Interpol repôs o quadro no Louvre na semana seguinte.
A detenção do autor do roubo foi confirmada e supostamente condenado a um ano e quinze dias de cadeia.
Era isto, ou admitir ao mundo inteiro que o sorriso mais famoso da história da arte tinha sido pintado por um desastrado pintor de “fundos”.
Daniel Marron
segunda-feira, 4 de maio de 2009
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Isto é um verdadeiro e belíssimo conto! Parabéns Daniel.
ResponderExcluirMuito bom, mesmo. Continue, Daniel.
ResponderExcluirMagnifico.Excelente.Belo conto, escrita escorreita,merece o meu encanto e admiração, coisa rara de acontecer.
ResponderExcluirMais do que parabéns, muitos parabéns.
Tem que se convencer o Eduardo Serra (http://www.imdb.com/name/nm0785381/) a fotografar isto... :-)
ResponderExcluirParabéns, D.M.
Daniel, bem-vindo à Capoeira!
ResponderExcluirLê-lo foi um prazer!
"Pintor de Fundos" é uma trama extremamente bem urdida ... e que bem que narrou!
Mais um caso sério de talento!
Palmas!
Tenho a impressão de que já li algo sobre esta história que, pelo menos, será inspirada na vida real, ou estou enganada?
ResponderExcluirMuito bom, de qualquer modo.
Passo a explicar:
ResponderExcluirO quadro foi de facto roubado, em 1911, pelo tal Vicenzo Peruggia. As suas motivações patrióticas eram autênticas. Foi preso e julgado em 1913.
Também Apollinaire e Picasso foram realmente detidos, por largos meses, suspeitos de serem os autores do roubo.
O resto, meus amigos, o resto é ficção.
Como diria o Aleixo:
"P'ra mentira ser segura
e atingir profundidade
tem de trazer à mistura
qualquer coisa de verdade."
Obrigado pelos comentários.
Voltarei com mais contos pseudo-históricos, se a pena ajudar.
Daniel...
ResponderExcluirCom este seu Conto, fiquei a saber o nome do ladrão que quis devolver, à Bela Itália, o que Napoleão tinha roubado! E ladrão que rouba ladrão...
Magnífico conto, abrilhantado pela sua prosa, mais do que brilhante!
Diria que é o meu favorito mas... há tantos outros, tão bons!
E para além de escrever, também sabe pintar?!
Mais um autor, mas onde é que o Galo os desencanta?
ResponderExcluirE cada um que aparece é melhor que os anteriores...
Com tanta autora feminina, ainda bem que chega um contista masculino e ainda por cima de qualidade.Parabéns, e desculpem-me o machismo.
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