sexta-feira, 15 de maio de 2009

O Tempo e o Modo

Saiu da farmácia com o tubinho descartável bem apertado entre os dedos de uma mão, junto ao peito.
Na outra, um pequeno rectângulo de papel dobrado tinha na capa uma inscrição que não leu e no interior um veredicto que não quis ler.
Vagueou enquanto pôde pela avenida, a essa hora já repleta de gente.
Tudo aquilo lhe parecia insólito.
A vida continuava, como sempre ouvira dizer.
A angústia, tão presente no seu rosto, a aflição entre o não querer e o ter que saber, não parecia afectar nada em seu redor.
Os mesmos carros brilhantes, o mesmo céu azul, a publicidade a coisas felizes.
A ironia tomou conta do seu estado de espírito e sentiu-se tentada a rejeitar o inevitável e entrar por um outdoor adentro, directa aos destinos felizes.
Nunca tinha sido confrontada com grandes escolhas.
A última que lhe ocorria teria sido a opção de continuar no Inglês no 9º ano ou enveredar mais a sério pelo Francês.
Perante esta bitola o cenário agora afigurava-se-lhe de uma violência exagerada, como quem passa num exame de condução e no dia seguinte é obrigado a pilotar bólides numa pista.
A analogia pareceu-lhe pateta mas desculpou-se pela sua própria pouca idade.
Adulta, sim, mas não tanto.
Estudava o que gostava, vivia em casa dos pais e tão cedo não pensava emancipar-se.
Não tinha namorado. Só um amante.
E era-o, assim mesmo num gerúndio improvisado, porque sendo presente na sua vida, também o era de forma lícita na vida de outra.
Vivia bem com essa dualidade.
Achava mesmo que tinha o melhor da situação: a atenção mimada de um homem, o recheio das surpresas aqui e acolá, o aconchego casual de uma cama e nenhuma responsabilidade em manter a saúde da relação.
Dito assim, era de uma frivolidade que doía mas francamente, como quem vê um filme pela segunda vez, ela sabia o que se seguiria e preferia o desfecho de antemão que a desilusão da surpresa.
E nesta fria lucidez vivia sem queixume.
Desta vez, não sabia, porém, o desenlace. Ou por outra, sabia.
Sabia que não podia ter um filho de um homem casado.
Não seria justo, sobretudo para o filho.
Como não seria justo para os pais, que tendo-a criado nos moldes mais liberais do respeito e da confiança, seria no mínimo imbecil devolver-lhes a mais primária das travessuras que as meninas indisciplinadas cometem.
A leitura do papel não a surpreendeu.
De alguma forma já o sabia. As mulheres sabem, dizem.
Sentiu-se uma delas.
Não só por aquela premonição, que o não era, mas sobretudo pela avassaladora vaga de felicidade que a invadiu instantaneamente.
Não sabia explicar.
Era a sentença que não queria ler e, em simultâneo, a mais doce das emoções.
Sentiu a paz interior dos aflitos, aquela descrita pelos que foram tocados pelos profetas.
Havia uma mensagem de esperança naquele novo sentimento.
De repente, tudo lhe parecia óbvio.
O futuro seria tão simples e tão positivo como aquele que acabara de ler.
A tomada da decisão estava feita; a seguir, a comunicação aos pais.
Eles haveriam de abraçá-la, como sempre o fizeram.
Tomou-se então de coragem e viveu os dias seguintes à procura do momento adequado para a notícia.
Esses dias foram intensos; cheios de planos, de sorrisos cúmplices e de vida real.
Tão real que a acordou.
Não se lembra como dali passou ao extremo oposto.
Alguns dias depois, só recorda ter acordado num choro que julgava interminável.
Chorou muito, muito.
Chorou uma perda que nunca seria acarinhada.
Em nome de uma licitude que não era sua, trocou a alegria daqueles dias pelo pranto de uma vida.
Escondida, fizera o que a sensatez, ou a falta dela, mandou.
Teve, apenas e tão só, um agradecimento mudo da parte que agora menos lhe importava.
O gerúndio passara a pretérito imperfeito.

Mrs. Dalloway

9 comentários:

  1. Dramático.Violento.Bem escrito.Quase perfeito no seu pretérito imperfeito.

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  2. Mais um conto intenso e muito bem escrito da Mrs.Dalloway.
    Como os extremos tocam-se, só pode ser a Contessa ou a MTH. Acertei?
    Ou então...

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  3. Mais um tema feminino, embora todos tenhamos passado por situações parecidas, de um lado ou de outro. Bem escrito e emotivo mas gosto mais de contos bem dispostos...

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  4. Wrong, Adriano...
    Eu também, PMP, mas nem sempre sai.

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  5. Bravo, Mrs. Dalloway !
    mas como diz, "nem sempre sai"... :-)

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  6. Ufff!
    Amargura em cálice de absinto...
    Muito bem escrito. Nem de mais, nem de menos. A justa medida de uma longa história que se adivinha, contada em micro!
    Continue Mrs. Dalloway e brinde-nos com a sua arte!

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  7. Essa dos extremos tocarem-se ( e que extremos? e de quê?) é que eu não perdoo...

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  8. Parabéns Mrs. Dalloway (curiosamente nunca me senti curiosa sobre quem é quem). Não é fácil escrever as coisas sem nomes e moradas e conseguiu.

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  9. Um Pretérito que, mesmo no Futuro, será sempre um Presente imperfeito da Condição Feminina.
    Escrito com lágrimas e sangue.

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