segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Eu, malandreco, me confesso

Citação:
«Saramago é um malandreco
e sabe que está a provocar a Igreja»
Padre Carreira das Neves, teólogo

Com o povoréu frenético a remexer a panela saramaguiana pareceria suspeito que eu, um malandreco cadastrado em todos os credos, não metesse a colherinha laico-disfuncional na caldeirada. Surpreende a descoberta de tamanha quantidade de teólogos vindos à luz do dia por obra e graça de um malandreco reincidente, mas nobelizado, portanto não um malandreco qualquer.

As linhas de força do debate definem-se em duas expressões inusuais em debates: «literalismo» e «simbolismo». Muita gente não saberia, no entanto agora já sabe que uma letra, uma palavra, uma frase, uma história, podendo ser apreendida como literal não passa de uma espécie de máscara que esconde, ou modifica, um significado. E vice-versa. É um jogo sistemático em suporte literário. Nenhuma novidade, acontece desde o tempo dos sumérios, há cinco mil anos, quando atribuíam aos próprios deuses os mais tenebrosos actos praticados pelos humanos, havendo porém o cuidado de serem punidos por um deus maior. A mensagem era clara: «Vêde que nem um deus é isento do mal, mas, ai dele!, será castigado pelo que fez..» Os castigos não eram menos horríveis. As coisas complicam-se um pouco quando temos em cena um único deus (ou Deus, para não infringir a convenção). No quadro monoteísta de vazio suprahierárquico, de ausência de uma divindade superior, ocorre a alguns o expediente do "simbolismo", algo de inexcedível ambiguidade e abrangência. Uma má solução, em meu humilde parecer. O argumento do mau uso do texto literal é de uma puerilidade que, bem creio, nem persuadirá os próprios exegetas bíblicos. Neste ponto, o malandreco do Saramago marca um pontinho.

Do muito que se tem dito e escrito nos últimos dias, a análise mais desassombrada e inteligente será a do padre Anselmo Borges, também professor de Filosofia. Começa por reconhecer, sem rebuço, que há na Bíblia «violência, crueldade, imoralidade, tirania, arbitrariedade...» para mais adiante advertir: «... a Bíblia não é um ditado divino.»

Muito simples. Mas parece ter escapado aos mil e um opinantes do "caso Saramago". Não foi Deus quem escreveu a Bíblia ou ditou o respectivo conteúdo. A Bíblia foi escrita por homens. Não um, ou dois, ou dez, talvez centenas de homens, num vagaroso labor literário que – é importante lembrar, porque não tem sido referido – demorou mais de mil anos.

Abandone-se assim o estéril argumento do "simbolismo" e assuma-se a Bíblia como uma magistral criação literária, colectiva, escrita e reescrita, configurada e tematizada por homens de carne e osso. Homens tão imaginativos (porventura mais, muito mais) quanto José Saramago ou Stephen King, o mestre do terror, que, estou certo, não desdenharia assinar aquela apavorante história do Job, tema que gloso num capítulo inteiro do meu último livro, num registo entre o paródico e o muito sério (ou seja, malandreco).

Repito o substantivo: "homens". Pronunciemo-lo com orgulho humano. Sentir-me-ia honrado podendo estender-lhes a mão num cumprimento afectuoso e de admiração. À sua maneira, todos eles foram uns grandessíssimos malandrecos. Ficcionaram com talento o crime de Caim e eu apostaria singelo contra dobrado em como Deus é alheio por completo ao episódio. Que vá em paz.

Apertar a mão aos redactores da Bíblia seria em absoluto diferente de apertar a mão a Deus. Acontecendo um tal encontro ver-me-ia forçado a repetir as palavras que o filósofo Bertrand Russell (outro lúcido malandreco) confidenciou levar preparadas para um face a face:

«Meu Deus, por que te apresentastes ao Mundo com tão insuficientes provas de existência?»

Russell morreu em 1970. Não sabemos se a pergunta terá sido feita e, na afirmativa, qual foi a resposta.

Teremos de aguardar.

Na realidade, já aguardávamos muito antes de a Bíblia existir.








Pedro Foyos
Jornalista

7 comentários:

  1. Excelente !

    Também quero ser um malandreco cadastrado a meter a colherinha laico-disfuncional na caldeirada.

    Onde é que um gajo se inscreve para isso ?


    :-))



    Em relação ao facto de Deus se apresentar ao mundo com insuficientes provas de existência, oferece-se-me que a existência do dito é mais uma fézada, e menos uma questão de prova.

    Eu estou-me nas tintas para o senhor, mas não quero nem acóilitos, nem prosélitos...


    Tantos assuntos numa só crónica, Pedro Foyos, espero que outros peguem no que eu não pude. Parabéns !

    :-)

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  2. Pedro Foyos...
    Análise também desassombrada e inteligente, própria de alguém que já pensou muito sobre tudo isto.
    Mas parece-me que, hoje, estamos todos demasiado preguiçosos...
    Por mim falo!

    Mas lá que vamos ter de continuar a aguardar, lá isso vamos...

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  3. Numa altura em que muitas pessoas se refugiam no lachismo, na preguiça e na agressão verbal gratuita, sabe bem ler um texto escrito com cabeça e com princípio, meio e fim. Parabéns Pedro.

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  4. Para ler, reler e … (aqui fica o repto aos seguidores do Galo) reencaminhar para os nossos contactos.
    Somos todos diariamente invadidos por “lixo blogosférico”, por duvidosas campanhas de nacionalismo bacoco, por pseudo-análises de eruditos “politologos”.
    Porque não “propagar” textos com a qualidade e o rigor desta crónica ?
    Bora lá ?

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  5. Bom texto o do Pedro, boa sugestão a do Armando...

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  6. Inteligente a crónica do Pedro Foyos.
    Agradeço ao A.A. ter-me alertado para ela.

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  7. Jezuuzz, João Menéres, se me desse para seguir todos os blogs que o senhor segue nem tinha tempo para alimentar o cão...

    ainda não tinha chegado à letra C e a conta já ia em 59...

    :-)

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