Naquele elevador, os olhares não têm muito por onde vaguear
Ora confirmam novamente o andar que sabem ter marcado bem, ora passeiam nos dizeres da carga máxima em busca, sabe-se lá, das notícias do dia. Frustam-se, claro, numas letrinhas pequenas sem nada de novo. 16 pessoas. 2000 kg.
Num instante faz as contas. 125 kilograma por pessoa. É muito, pensa.
Cada corpo que aqui está a meu lado, pouco passa de metade disso. Alguns, aquém.
Contarão eles com o peso da consciência, então?
Se assim, for, aquele senhor ali do canto, o que não tira o olhos do chão, só ele deve chegar à carga máxima. Nota-se nos olhos. Carrega um feixe de luz apagada no olhar, como uma lanterna que pinta de escuro ao invés de alumiar. Existe isso?
Se existisse estaríamos nas trevas, aqui no elevador.
Aquela ali, fixa as quatro lâmpadas de halogénio no tecto, com uma mão na cintura e o dedo enrolado sob o queixo. Percebe-se que discerne sobre assuntos que a elevam acima da condição de viajante de elevador. Tem as sobrancelhas numa dança misteriosa que revelam segredos occipitais. Tem peso, também, mas não é de consciência. Pelo contrário, é daqueles que alivia. Dá para sentir uma espécie de paz interior no intervalo daquela dança. Mais ainda, é das que contagia. Gostaria de a conhecer.
Num soluço, o elevador pára, sem aviso. Poucos instantes depois, param também os corpos viajantes. Não foram totalmente cumpridores da ordem de paragem porque sofrem de inércia e levaram, assim, o seu tempo a obedecer. Além disso, padecem de curiosidade e sobressalto e procuraram, por momentos, a causa daquela abrupta paragem.
O escuro, afinal, não vem do olhar daquele homem, como temeu, mas simplesmente da ausência de luz dos quatro halogénios. Pequeninos leds no painel de comando tomam a sua vez o que, reconhece, tem a sua ironia. Quando tudo funciona, ninguém dá por eles; quando as outras se apagam, cá estão eles a imperar. Dá-lhe vontade de fazer uma série de metáforas fáceis com essa imagem mas opta por preocupar-se com a situação, já que os outros fizeram o mesmo.
Primem-se botões, fala-se num microfone ridículo com um homem na central.
Descansa-nos que a ajuda vem a caminho.
Viu-se, naquele grupo restrito, formarem-se espontâneas cadeias de comando, quase imediatamente. O homem do olhar escuro é realmente apagado. A senhora dos olhos no tecto é excelente executante. Mas à frente de todos, está ele. Calmo, parece saber tanto de elevadores como de alta finança. E é com essa sabedoria que nos acalma a todos. Estima, com sobranceria, o tempo de resgate e dá-nos conselhos sobre a forma de respirarmos para mantermos a calma; indaga se há doentes do coração. Não há. Asma e ataques de pânico, idem. Melhor. Mais fácil de resistir e agrupar forças. Por sua sugestão, sentamo-nos no chão e iniciamos uma espécie de jogo adolescente para aliviar a tensão. Devemos dizer o nome, em que andar e empresa trabalhamos e as nossas características mais expressivas.
Como o jogo começa no indivíduo que está ao seu lado e segue a ordem oposta, tem muito tempo para pensar no que dizer, enquanto acena e sorri aos relatos que vai fingindo ouvir. Está, é claro, muito mais interessada na oportunidade de se mostrar, a ele e só a ele. Sente que é agora. Tudo ou nada. Vai dizer-lhe o suficiente, apenas, para que se mostre tão interessante quanto enigmática. A táctica do rabo de fora. Ele virá à procura do resto, seguramente.
Já estou a imaginar os jantares lá de casa, daqui por anos: “E vocês, como se conheceram?”. E a resposta, pronta: “Oh, isso é uma história muito engraçada... Foi num elevador empanado!”, enquanto as crianças correm pela casa, num corrupio de primos de franja.
Durante a roda, é ele quem faz as perguntas e põe ordem nas risotas que se vão gerando. Já sem o nó da gravata apertado, dá-se ares de informal sem nunca, contudo, perder um certo ar aristocrático que só lhe fica bem. Fecha os olhos e facilmente se imagina numa roda à volta da fogueira na praia. O malmequer que lhe coloca na orelha, a guitarra que toca de cor.
Verdade ou consequência! É isso! Parece mesmo esse tonto jogo de verão. Quase consigo sentir-lhe o cheiro a maresia na pele...
E se ele for “Ele”, pronome com direito a caixa alta e tudo?
Se for, estou preparada. O amor pode surgir nas situações mais críticas. Como nas outras. Pode ser inesperado, planeado, ansiado, esquecido, imprevisto, mal-tratado. O AMOR É tudo isso.
E por isso, aqui, neste momento poderei... Espera! É a minha vez! Oh meu Deus! É agora!... Vruummmm!
O elevador reiniciara a sua marcha. Que desilusão! Os outros, no meio da alegria, erguem-se; os casacos a serem vestidos, os cumprimentos do tipo “até outro dia desde que não seja aqui”.
Ela quer outro dia, desde que seja “ali”.
Vê-o afastar-se, gorada a sua chance. Então e o amor...?
Desse dia em diante procura-o a todas as horas. Viagem acima, viagem abaixo, uma vez mais com as metáforas ridículas na sua mente. Agora vê-se de sapatinho de cristal na mão, na procura daquele a quem sabe servir. Finalmente, revê-o. Ele entra no 10º andar e vê-a imediatamente, ao fundo. Os seus olhos nos meus, novamente. Vou aceder ao convite, vou tomar café e contar-lhe a minha história. Eternidades depois de entrar no mesmo elevador, ele roda sobre os sapatos e dá-lhe as costas. Apenas um ligeiro aceno de cabeça e um torcer de cantos dos lábios que nem de sorriso posso chamar.
Ontem, fomos uma irmandade no elevador, dispostos a tudo, juntos. O amor no horizonte, a fogueira na praia, a guitarra só para mim, os jantares de amigos...
Hoje, voltamos ao ramerrame do dia-a-dia. Acenos e nada mais.
Não se contém e aborda-o:
- Olha lá! Vai mas é dar uma volta, tu mais a guitarra e os miúdos de franja, ouviste?
Chata Borralheira
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quinta-feira, 22 de outubro de 2009
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O AMOR É... começou a engrenar, já ninguém o segura!!!!
ResponderExcluirO AMOR É... o que sinto, nestas alturas, por toda a equipa que faz o Galo!
ResponderExcluirSimplesmente soberbo! Quero escrever assim qando fôr grande!
ResponderExcluir...e parece-me que conheço o estilo!!!!!
Chata Borralheira, a estória tem graça, contudo o seu português não é o meu.
ResponderExcluirMuitos parabéns, seja como fôr !
:-)
gosto do pseudónimo. e gosto da altura em que surge a frase obrigatória, finalmente não foi no fim.
ResponderExcluirGrande conto. E grande.
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