a propósito do romance "Botânica das Lágrimas"
Tenho um baú valioso, de aspecto exterior indefinido, quase diria imaterial, mas o que me interessa é o conteúdo. Está cheio de memórias vivas. Memórias de infância. Há outras, mas por razão que desconheço são as da infância que primeiro tacteio ao meter lá a mão, ou serão elas que procuram os meus dedos e se ferram de um tal jeito que inadvertidamente causam dor. Fora isso, torna-se divertido. Basta meter a mão e logo vem à luz um sem número de pepitas mágicas. Desse baú me sacio, mesmo sem fome, porque sou um predador compulsivo de memórias inocentes. Tanto-tanto que tenho passado os últimos tempos a remexê-lo, desentranhando as lembranças da pré-adolescência, em especial explorando o veio riquíssimo dos sete anos e meio, quas'oito – a idade que tem Alice quando me convida a visitar um certo País por ela nomeado das Maravilhas que acho, já lho disse, uma maluquice pegada e fartamo-nos de rir ao acordarmos.
Numa dessas ocasiões fantásticas passou por mim a correr o mestre Daniel Sampaio que me informou, tirando do bolso um relógio com o tamanho de um prato de sopa, estar atrasadíssimo, «ai, que atrasado estou!», repetiu, acrescentando que me daria conta de algo de importante se o acompanhasse na corrida. Nunca desperdiço uma oportunidade de saber "algo de importante", para mais vindo de uma douta personalidade como Daniel Sampaio, e lá emparceirei botando fogo às canelas, como costuma dizer um amigo brasileiro que é Imperador com maiúscula. Aquela idade, esclareceu-me o apressado cavalheiro andante, é uma das mais importantes na vida do ser humano porque, explicou sem abrandar a passada, nessa fase a criança começa a construir a sua identidade, a autodescobrir-se e a reinventar, com inesgotável inventividade, a realidade, a vida, os heróis de ficção, os amigos imaginários...
Retorqui: «Doutor!, páre lá um bocadinho e diga-me... não se pode parar aí, como fez a Alice?». Vi-o sorrir, pareceu-me ter-se revigorado naquele corre-corre e quem parou fui eu, vencido na lufa-lufa. Invejo-lhe a energia.
Fiquei sentado numa curva do caminho, à sombra de uma oliveira, meditando com ela em disparates próprios de quem chega à idade velhusca do pé-de-pantufa (era o meu caso, e o dela, da oliveira raiz-de-pantufa porque todas as oliveiras já nascem velhas). Assim pensei e repensei como se erigisse o pórtico luminoso de um teorema para a salvação da humanidade. Eis: o mundo será maravilhoso quando todos conseguirmos parar nessa idade. A idade-passarinho. Alguns conseguem parar mas têm de passar a vida a disfarçar que são crescidos. Recordei a minha amiga Cecília Meireles, sempre saudosa dos "contos de fadas", que me interrogava com imensa angústia: «Em que espelho ficou perdida a minha face?» Sabendo o que sei hoje ter-lhe-ía respondido: «Olhe aqui, Cecília, 'ocê se lembra daquele espelhinho redondo, cor-de-rosa, em que se mirava pequenininha, pelos seus sete anos e meio, quas'oito? Pois foi aí, aí mesmo, que ficou perdida sua linda face. E não volta mais não.»
Logo saltei para o epílogo: o que há de mais aproveitável na espécie humana confina-se ao tempo efémero da pré-adolescência. Antes, há insuficiente racionalidade; depois, há de mais. Do estado natural da pureza (já se insinuando, todavia, a perversidade com que todos somos ungidos à nascença) passa-se bruscamente para o estado natural da parvoíce.
A este pensamento sucedeu uma antiga interrogação: por que motivo, ao meter a mão no baú, de imediato colho, à superfície, as memórias antiquíssimas, as da infância? Não deveriam elas estar no fundo-fundo e as recentes à mão de semear?
As oliveiras costumam ter respostas para tudo, mas desta vez valeu-me o poeta António Gedeão que sob a forma de um anjo me soprou ao ouvido: «Pergunta aos sábios.»
Em consequência e abusivamente envolvi nos meus devaneios dois ilustres das neurociências portuguesas, Pratas Vital e Carlos Lima, que, com uma infinita paciência, me elucidaram por e-mail:
«Quando somos mais jovens, os registos importantes ficam gravados no DNA das células nervosas, os neurónios. Com a idade, o registo passa a ser feito nas ramificações dos neurónios, os dendritos, e, por isso, mais passíveis de alterações, nomeadamente a sua perda.»
Dito de maneira a que os leitores jovens compreendam: um acontecimento de há 50 anos encontra-se gravado no disco duro, só desaparecerá no momento fatídico em que o computador sofrer um crash irremediável, definitivo. Em contrapartida, algo que se passou há meses permanece num patamar de imponderabilidade, uma espécie de reciclagem cujo destino a brevíssimo prazo é o delete vagaroso, baço. Como sabemos, ao contrário do crash, a supressão das memórias na área da reciclagem não afecta o computador.
«Um dia vais mesmo crashar», observou-me a oliveira. «Puff!... lá se vão as memórias de infância...»
«Sim», concordei. «Entretanto... é um festim.»
Pedro Foyos
Jornalista
Nota: A imagem que ilustra este texto é de Dave McKean
Muito interessante e elucidativa, a sua explicação.
ResponderExcluirGrande baú...
ResponderExcluirMuito interessante a junção da experiência pessoal com a análise científica. Daí dizer-se que se esquece mais depressa o novo do que o velho. Um dos sintomas de senilidade ou de qualquer doença degenerativa cerebral é a facilidade com que essas pessoas reagem a uma foto, um nome, um local, um aroma,uma música antigas e o seu próprio almoço da véspera!
ResponderExcluirUma inteligente simbiose entre a ficção e a ciência.
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