sábado, 24 de outubro de 2009

Taxi - O motorista/ouvinte honesto

Lembro-me que o meu Pai mandava encadernar,
quase todos, os livros.
A colecção das primeiras edições do Eça,
em carneira com gravados a ouro.
As Farpas do Ramalho ou Os Gatos do Fialho de Almeida
em meia francesa.
Àqueles para quem isto é meio chinês, passo a explicar
- uma encadernação meia francesa é a que tem, apenas,
a lombada e os cantos da capa e da contracapa forrados a pele,
sendo as restantes áreas
cobertas por um outro qualquer material.
Eu aprecio mais os livros com a capa original, dura ou brochada,
e só utilizo a encadernação para reunir alguma obra
que tenha sido publicada em fascículos ou para
as revistas antigas que vou adquirindo, compulsivamente.
Tal é o caso do Cavaleiro Andante, da Cinéfilo,
do Mundo de Aventuras ou do Diabrete,
da Ilustração Portuguesa e da Paródia, entre outras...

Naquele dia, tinha ido a Campo de Ourique, a um dos poucos encadernadores que ainda subsistem, buscar três volumes de uma Enciclopédia Espanhola de Comics, que fora editada em fascículos.
Todo contente, com os livros debaixo do braço, apanhei um táxi
e pedi-lhe que rumasse ao Conde Redondo, onde morava na altura.
Nessa época, aparecia semanalmente num programa infantil da RTP, para além de ter um Programa na Rádio Comercial,
que durou sete anos.
Não foi, pois, surpresa, o taxista ter-me reconhecido e afirmar ser ouvinte fiel das Noites Longas, o tal programa que todos
os Domingos à noite ia para o ar, durante três horas.
A viagem decorreu num ápice e, quando desci à porta de casa
com o ego devidamente alimentado, despedi-me do simpático motorista, com afabilidade.
A disposição só mudou drasticamente quando, ao subir as escadas, me apercebi de que, no meio de toda aquela conversa, deixara
os três volumes encadernados, no carro.

Nos dias seguintes, liguei para as diversas cooperativas de táxis , mas nada...Dos meus livros, ninguém tinha notícia.
Resignado com a perda, enorme para mim, não pelo valor real das peças, mas pela quase impossibilidade de readquirir nova colecção
( aquela tinha sido comprada no El Rastro, em Madrid),
retomei a minha vida normal.
Todos os dias apanhava um táxi para Alvalade, à volta das nove horas da manhã, e, ao fim da tarde, refazia o trajecto, em sentido inverso, utilizando o mesmo meio de transporte.

Até que um dia...ouvi buzinadelas, do outro lado da rua.
Olhei, pensando ser algum táxi vazio a chamar-me a atenção.
Mas não, era o motorista, de alguns dias atrás,
com a sua boina e barba inconfundíveis, que me acenava.
Atravessei a rua e vi que o carro tinha, dentro, uma senhora.
"- Entre, entre...tenho andado à sua procura" disse-me o taxista, indicando-me o lugar ao seu lado.
Perante a anuência da passageira, sentei-me no lugar do pendura, enquanto o homem me explicava:
"- Quando reparei nos livros que deixou, fui à Rádio Comercial para ver se o encontrava, mas como ninguém sabia a sua morada, tenho passado todos os dias, aqui pela rua, a ver se o via. E hoje..."

Para encurtar a história, que já vai longa, levámos a senhora ao destino, depois fomos buscar os livros e seguimos para Alvalade, onde lhe paguei a corrida, acrescida de uma gorjeta choruda.

A partir desse dia, nunca mais quis ouvir generalizações
acerca da desonestidade dos taxistas...

Travis Bickle
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2 comentários:

  1. Interessante recordação e um bom elogio à grande maioria destes profissionais.Há tristes excepções como em todas as profissões, agora até no sector público.
    A propósito de encadernações também o meu Pai as mandava fazer e por isso hoje tenho uma bonita biblioteca, onde estão várias obras de renome e até uma colecção das Selecções desde o nº 1 até ao ano do seu falecimento.

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  2. T.B., andámos todos pelos mesmos lugares, este paísinho é realmente muito 'piqueno'...

    Das encadernações... nem vou falar, tenho demais, mas acho o máximo.
    E dão-me uma trabalheira a "manter".

    Li o Eça todo (mas também devo confessar, era miúdo, estava de "quarentena", papeira, rubéola e/ou escarlatina, por aí, não havia nem TV nem grandes alternativas... a certa altura parecia-me tudo igual... e não era !)

    É claro que li o Ramalho (quase todo), ele não escrevia tão bem como Eça, mas era intelectualmente um pedaço acima, acho que o José Maria sabia disso...

    just my two damned cents.

    O Fialho de Almeida não escreveu assim tanto, e devia ser leitura obrigatória para as criancinhas não ficarem de todo estúpidas.

    :-)

    As B.D.s, em teoria, não seria preciso "encorajar" os putos a ler, mas hoje em dia... TV,TV,TV., sabe-se lá.

    :-(

    El Rastro é mais interessante que o Bairro de Salamanca, ou a Gran Via, ou... ou mesmo aquelas vielas ao lado com "semi tascas" onde lhe serviriam uma coisa chamada "Aeropuerto", que é um bife de 'ternera' que ocupa o prato todo e dá aí para umas três pessoas...


    É uma pena se o Conde Redondo estiver ainda como...cala-te boca.

    ;-)

    Conheço Alvalade como a palma das minhas mãos, por razões que não vêem ao caso.
    Só espero que não consigam também ajavardar completamente aquilo, era mesmo um bairro, 'safe', e onde podia ser interessante caminhar, comer, ir às lojinhas, e se calhar mesmo viver, embora as casas sejam quase todas uma boa merda, e estejam a precisar de obras.





    Os taxistas... pois.

    Muitos dos de de Lxº, só a tiro.

    Muitos outros, noutros lugares, como aqui felizmente, são muito mais que OK.

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