sexta-feira, 8 de maio de 2009

Enganar o Destino

O homem levantou-se à mesma hora de todos os dias.
Chinelando, arrastou-se até à cozinha onde preparou o habitual café da manhã.
Quando se preparava para tomá-lo, apeteceu-lhe, afinal, um cacau quente e abandonou a chávena cheia sobre a bancada.
Dirigiu-se à despensa de onde tirou a lata do cacau em pó e surpreende-se com a presença de um envelope, fechado, mesmo atrás da lata.
De forma mecânica retira-o e pousa-o junto da esquecida chávena de café.
Depois de preparar o cacau quente enceta, então, a tarefa de abrir o envelope.
Provavelmente alguma conta esquecida, mas estranha a ausência de remetente.
Tem, contudo, o seu nome bem legível, assim como a morada.
Está escrito à mão, com um letra cursiva irrepreensível, daquelas que já não se fazem.
Não fosse saber ser impossível, diria que o sobrescrito estaria ali há pelo menos dez anos, portanto, muito tempo antes da sua mudança para o pequeno apartamento.
Lá dentro, um pequeno papel pautado dizia com a mesma letra: “O homem preparava o seu café da manhã quando lhe apeteceu, afinal, um cacau quente.”
Estupefacto não pode evitar um sobressalto nas sobrancelhas logo seguido de um arrepio pelo corpo.
O papel caiu ao chão e, certo que depois do banho teria vantagem para deslindar aquele estranho episódio, pôs-se a caminho da casa de banho.
Fez por não se esgotar à procura de uma justificação para o sucedido e, por isso, encheu a banheira de água ao invés do duche habitual.
Deitou a cabeça na borda, sobre uma toalha enrolada e ali esteve por largos minutos, de cabeça vazia.
Por fim, deitou a mão à toalha que tinha sob a cabeça para se enxugar, enquanto saia para o tapete.
Por entre as dobras da toalha desliza novo sobrescrito, que lhe aterra sobre os pés ainda molhados.
Muito lentamente, tomado de susto, baixa-se para o apanhar; nesse percurso convence-se que só pode ser o mesmo envelope da despensa mas é obrigado a abandonar a ideia quando constata, no regresso à posição erecta, que este envelope está, ainda, fechado.
Por fora, a mesma letra remete para o mesmo nome e morada.
Com o coração em agonia, abre violentamente a carta e lê por entre o enevoado do vapor: “Nessa manhã, o homem tomaria um banho de imersão e não duche, como habitualmente fazia”.
O homem é superado pela inquietação e corre para o quarto quase para se certificar que o seu corpo está ainda deitado na cama e tudo aquilo é um sonho mal explicado.
Para seu desgosto a cama está vazia o que ainda o desassossega mais.
Veste-se muito à pressa, numa ânsia de abandonar rapidamente o apartamento.
A sua tese, agora, é que tem andado a trabalhar demais no escritório e isso está a provocar-lhe alucinações de stress ou coisa que o valha.
Na urgência de falar com o chefe e pedir-lhe férias para hoje mesmo, mete a gravata no bolso para só a colocar mais tarde, à entrada do escritório.
Na devolução da mão ao exterior do bolso, vem-lhe apensa nova carta, que traz imediatamente um imenso suor à testa e ao colarinho, inutilizando uma camisa lavada.
Em tremores incontroláveis, o homem opta por abrir logo ali o envelope, convicto, porém, que mais uma tirada advinhatória o espera.
Não se enganou. Desta vez rezava: “O homem pôs então a gravata no bolso, na expectativa de a colocar mais tarde, a caminho do trabalho.”
Corre, então, para o exterior do apartamento e dirige-se às escadas.
E então, sobressaltado, pára. Não era costume ir de escadas.
Tomava sempre o elevador.
Pensou então, que se fizesse algo que não era costume seu, provavelmente, seria brindado com novo envelope e desta vez decidiu tomar a dianteira do destino e antecipar os seus próprios movimentos.
Lentamente, recua os três degraus que já havia descido e volta-se para a porta do elevador. Ao carregar no botão, vê-o; lá está ele, o envelope fechadinho, entalado na chapa metálica dos botões de chamada do elevador, mesmo sob o seu nariz.
Desta vez sorri; mostra mesmo os dentes, num gesto antecipado de vitória.
Confiante, abre o sobrescrito e pôde ler: “Ao sair de casa, o homem tomou as escadas, em vez do habitual elevador.”
Riu. Riu alto, numa gargalhada desdenhosa.
Enquanto esperava a chegada do elevador, leu várias vezes aquelas duas linhas, num gesto de chacota, como quem ridiculariza o adversário.
Sentia que tinha driblado o autor daquelas cartas, fosse ele quem fosse.
Estava confiante, como quem sabe que enganou o destino.
A luz de chegada acendeu-se e o homem, relendo vezes sem fim a carta derrotada, abre a porta e entra, vitorioso.
O seu grito fez-se soar por todo o poço.
O elevador estava, avariado, no rés-do-chão.

Dear Prudence

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11 comentários:

  1. Contos do insólito...no seu melhor.
    Dear Prudence...na sua melhor forma.

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  2. Dear Prudence é uma das minhas autoras preferidas, nos Microcontos.
    Aqui mudou de estilo e de tema mas deu-nos uma interessante história, na mesma.

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  3. Twilight Zone misturado com Suspense.
    Muito bom.

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  4. A certa altura do conto, pareceu-me estar na atmosfera do P. Auster. Parabéns Dear Prudence.

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  5. Quantos micros já foram publicados? Nunca pensei que se conseguisse este ritmo, e esta qualidade. Parabéns a todos os envolvidos.

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  6. Até à data devem ter sido publicados cerca de 55 MicroContos, mais um menos um, ou seja um por dia, nos dois últimos meses.
    Agora só nos falta continuar neste ritmo, por mais quatro meses.
    Cócórócócó...

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  7. E afinal, o destino enganou-o a ele!
    Efeito muito bem conseguido, no último momento...
    Cheguei a sentir-me arrepiada!

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  8. Muito lentamente, tomado de susto, estou petrificado e desdenho quem não gostar de si.
    Valeu, Dear Prudence :-)

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  9. Também gostei imenso. Não sei mesmo se não foi um dos melhores. Também me lembrei de Auster. Continue!

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  10. Margarida Ferreira dos Santos9 de maio de 2009 às 15:22

    Talvez um dos melhores e, certamente, o melhor de Dear Prudence!

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