Tanto estrelejaram os foguetes celebrativos
do primeiro aniversário do "Galo" que me ocorreu
o antigo e pitoresco caso de uma galinha
que se atravessou na minha vida profissional.
Uma reportagem frustrada converter-se-ia
numa crónica intitulada
"A galinha Deolinda e o repórter que chegou tarde".
Corria o mês de Maio de 1967...
Certa manhã, alguém trouxe à redacção um prospecto da União Zoófila no qual se mencionavam casos de excepcional dedicação de animais para com os donos – o fox-terrier que salvara um pequenito de dois anos de morrer queimado, a gata Violeta cuja impressionante odisseia a imprensa acabara de noticiar (depois de oferecida, percorreu 150 quilómetros para reencontrar-se com os primitivos donos) – e, entre outros mais, aquele que alertara o nosso informador, na verdade insólito: uma galinha (chamava-se – sim, a galinha! – Deolinda e vivia em Lisboa) que seguia a dona para toda a parte, qual dócil cachorrinho...
Dona Glória dizia: «Anda, Deolinda, vamos às compras!» – e a galinha alvoroçava-se, toda feliz, lá a acompanhava, cacarejante, na ronda pelos estabelecimentos locais.
Quantos nessa manhã estavam na redacção logo se deram conta do interesse jornalístico que, como curiosidade, oferecia a divulgação do fenómeno.
Fui o repórter incumbido de descobrir a Deolinda, acompanhado do fotógrafo Salvador Ribeiro. Este meu companheiro trataria de obter o "boneco" (a galinha seguindo a dona na rua), enquanto eu procuraria recolher elementos de reportagem.
Na União Zoófila, por onde iniciei as pesquisas, ninguém se recordava de como chegara ali a informação.
Mas dias passados, após vários telefonemas, vi finalmente recompensada a minha persistência:
– A sua galinha mora na Rua António Pedro, à Praça do Chile.
Não havia sido possível apurar o número da porta e foi assim que eu e o meu colega nos vimos obrigados à tarefa risível de percorrer uma rua à procura de uma galinha – da Deolinda!
Em diversas lojas da zona fizemos, compreensivelmente embaraçados, a pergunta picaresca:
– Sabe informar-nos, por acaso, onde mora por aqui uma senhora... que tem uma galinha...?
– Uma galinha?!
A maioria das pessoas recordava-se da galinha e da senhora sua dona – «que caso engraçado, não é?... – mas desconhecia o local exacto da morada.
Numa mercearia, enfim, quando estávamos quase a desistir, conseguimos saber que a nossa vedeta vivia perto, dois prédios adiante, num rés-do-chão.
Para lá nos dirigimos. Retiniu a campainha. Ladrou um cão. («Além da galinha», disse para o meu camarada, «também há cão. Podes metê-lo no boneco.» E ele: «Não, pá, não pode ser. A mulher passeia com a galinha e deixa o cão em casa!...»).
Não havia sido possível apurar o número da porta e foi assim que eu e o meu colega nos vimos obrigados à tarefa risível de percorrer uma rua à procura de uma galinha – da Deolinda!
Em diversas lojas da zona fizemos, compreensivelmente embaraçados, a pergunta picaresca:
– Sabe informar-nos, por acaso, onde mora por aqui uma senhora... que tem uma galinha...?
– Uma galinha?!
A maioria das pessoas recordava-se da galinha e da senhora sua dona – «que caso engraçado, não é?... – mas desconhecia o local exacto da morada.
Numa mercearia, enfim, quando estávamos quase a desistir, conseguimos saber que a nossa vedeta vivia perto, dois prédios adiante, num rés-do-chão.
Para lá nos dirigimos. Retiniu a campainha. Ladrou um cão. («Além da galinha», disse para o meu camarada, «também há cão. Podes metê-lo no boneco.» E ele: «Não, pá, não pode ser. A mulher passeia com a galinha e deixa o cão em casa!...»).
A porta abriu-se três dedos, pela frincha espreitou o rosto de uma petiza.
– Mora aqui a dona Glória?
– Sim.
– A menina é da família?
– Sou a filha.
– A mãezinha está?
Estava e logo assomou:
– Os senhores, que desejam?
Com o melhor dos sorrisos expus a nossa missão: o caso da galinha que a seguia para todo o lado, o assunto interessava-nos, a ideia de tirar uma fotografia...
Então dona Glória arregalou os olhos num turbilhão de gritinhos:
– Ai!, os senhores vinham p'la minha Deolinda! A minha querida Deolinda nos jornais, 'té me custa a acreditar! Ai que pena, que pena meus senhores, era p'ra mim uma felicidade tão grande! Mas não pode ser...
– Não pode ser?! – eu e o fotógrafo olhava-mo-nos perplexos.
– Não pode ser, não. 'Té tenho vergonha de contar porquê.
Impaciente, arrisquei:
– A galinha morreu...
– Morreu! Morreu, sim, morreu! Matou-a o meu marido, a semana passada!
Neste passo da triste cena, a dona Glória aperta a filha de encontro a si e desata a chorar convulsivamente.
Perturbados com a reacção inesperada, eu e o fotógrafo interrogava-mo-nos em silêncio sobre o que havíamos de fazer. Tomou ele a iniciativa, recorrendo às palavras de circunstância que se dirigem à família de um ente querido que acaba de exalar o último suspiro. Fazia-o em termos tão dolorosos que a infeliz senhora não hesitou em deitar as mãos aos ombros daquele homem-porto-de-abrigo que tão compreensivo se mostrava e tão sinceramente partilhava a sua dor. Eu pedia aos três santinhos da minha devoção que o marido não nos surpreendesse naquele instante.
– O malvado nunca olhou com bons olhos prà Deolinda – continuava, entre soluços, dona Glória. – Aquele homem tem uma pedra, tem gelo no lugar do coração. Há dias, apanhando-me fora de casa, o desalmado matou-me a Deolinda!
Depois, com uma expressão de comovedora ingenuidade, os olhos perdidos e aguados, a dona da malograda Deolinda denunciou-se, indissimulável, com palavras que me causaram um estremecimento:
– E só porque eu gostava tanto, tanto, de levar a minha Deolinda, à noite, para o nosso quarto, para ela dormir num poleiro que lhe fiz aos pés da cama.
– Mora aqui a dona Glória?
– Sim.
– A menina é da família?
– Sou a filha.
– A mãezinha está?
Estava e logo assomou:
– Os senhores, que desejam?
Com o melhor dos sorrisos expus a nossa missão: o caso da galinha que a seguia para todo o lado, o assunto interessava-nos, a ideia de tirar uma fotografia...
Então dona Glória arregalou os olhos num turbilhão de gritinhos:
– Ai!, os senhores vinham p'la minha Deolinda! A minha querida Deolinda nos jornais, 'té me custa a acreditar! Ai que pena, que pena meus senhores, era p'ra mim uma felicidade tão grande! Mas não pode ser...
– Não pode ser?! – eu e o fotógrafo olhava-mo-nos perplexos.
– Não pode ser, não. 'Té tenho vergonha de contar porquê.
Impaciente, arrisquei:
– A galinha morreu...
– Morreu! Morreu, sim, morreu! Matou-a o meu marido, a semana passada!
Neste passo da triste cena, a dona Glória aperta a filha de encontro a si e desata a chorar convulsivamente.
Perturbados com a reacção inesperada, eu e o fotógrafo interrogava-mo-nos em silêncio sobre o que havíamos de fazer. Tomou ele a iniciativa, recorrendo às palavras de circunstância que se dirigem à família de um ente querido que acaba de exalar o último suspiro. Fazia-o em termos tão dolorosos que a infeliz senhora não hesitou em deitar as mãos aos ombros daquele homem-porto-de-abrigo que tão compreensivo se mostrava e tão sinceramente partilhava a sua dor. Eu pedia aos três santinhos da minha devoção que o marido não nos surpreendesse naquele instante.
– O malvado nunca olhou com bons olhos prà Deolinda – continuava, entre soluços, dona Glória. – Aquele homem tem uma pedra, tem gelo no lugar do coração. Há dias, apanhando-me fora de casa, o desalmado matou-me a Deolinda!
Depois, com uma expressão de comovedora ingenuidade, os olhos perdidos e aguados, a dona da malograda Deolinda denunciou-se, indissimulável, com palavras que me causaram um estremecimento:
– E só porque eu gostava tanto, tanto, de levar a minha Deolinda, à noite, para o nosso quarto, para ela dormir num poleiro que lhe fiz aos pés da cama.
Pedro Foyos
Jornalista
Há gente muito insensível ... Que diferença faria a galinha dormir num poleiro aos pés da cama do casal ? Ela nem sequer podia contar o que via ....
ResponderExcluirEstes fait divers da profissão, são os textos do PF que eu mais aprecio.
ResponderExcluirTambém eu.
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