No Watergate americano,
o fundamental era a informação
que saía de uma garganta;
em Portugal,
é a informação que entra noutras.
"A História repete-se, primeiro como tragédia, depois como farsa".
Aqui está mais uma frase de Marx que demonstra o modo como, em certos aspectos, o seu pensamento está desactualizado ou incompleto.
Marx não soube perceber (mas quem o censura?) que, quando se repete em Portugal, a História volta na forma de um espectáculo que está vários furos acima da farsa - quer em termos de ridículo, quer quanto à riqueza do enredo.
O recente caso do Watergate português merece, por isso, ser analisado mais do ponto de vista humorístico que do ponto de vista político. Felizmente, há muito para dizer.
A primeira grande diferença entre a complexa história de espionagem americana e a nossa soberba comédia talvez seja o facto de, nos Estados Unidos, as escutas existirem mesmo. Parecendo que não, numa história de escutas, isso faz alguma diferença.
Em Portugal, até ver, as escutas são imaginárias, o que confere à história este carácter encantadoramente rocambolesco - e muito português: os americanos agem, colocam escutas, espiam mesmo; os portugueses imaginam que estão a ser escutados, fantasiam sobre espionagem, convidam os jornais a efabularem com eles.
Nos Estados Unidos, o presidente mandou colocar escutas na sede dos seus adversários políticos e foi apanhado. Demitiu-se.
Em Portugal, a fazer fé na imprensa, o presidente mandou publicar uma suspeita acerca de escutas colocadas na sua residência oficial e foi apanhado. Demitiu o assessor de imprensa.
Faz sentido. Nos Estados Unidos era a sério. Cá, era a fingir. Não estava a valer.
Outra diferença importante: nos Estados Unidos, o Garganta Funda era o informador dos repórteres; em Portugal, a profundidade gutural é uma qualidade dos jornalistas, característica aliás fundamental para a capacidade de engolir uma história tão frágil como absurda.
No Watergate americano, o fundamental era a informação que saía de uma garganta; em Portugal, é a informação que entra noutras.
Nos Estados Unidos, a investigação jornalística
foi publicada em livro e ganhou o prémio Pulitzer.
Em Portugal, a investigação jornalística não chegou a existir e a única coisa publicada foi um triste e-mail, cheio de erros ortográficos, o que o torna francamente indigno de participar nesta comédia.
Não há razão para que os espectáculos cómicos sejam menos bem escritos que os outros.
E, quando se colabora com um elemento ligado à Presidência da República para publicar uma história amalucada, deve vigiar-se o português.
Se o Presidente leva a sério a defesa da língua portuguesa e o prestígio da CPLP, deve pugnar para que as tentativas de conspiração que o envolvem sejam, ao menos, ortograficamente irrepreensíveis.
Ricardo Araújo Pereira in Boca do Inferno "Visão"
sexta-feira, 25 de setembro de 2009
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RAP no seu melhor
ResponderExcluirUma análise mais inteligente e a colocar o dedo na ferida do que a maior parte dos comentadores de televisão e jornais encartados.
ResponderExcluirComo disse a Q., RAP no seu melhor, e no seu mais 'ácido'... :-)
ResponderExcluirP.S.
A citação inicial é daqui,
tenho a certeza que existem traduções portuguesas, mas o livro não é grande coisa.
(just my 2 cents anyway) :-)