Decorar nomes e debitá-los numa vernissage
não nos faz cultos. Faz-nos parvos.
Especialmente
porque estamos convencidos do contrário.
Aqui há dias falava com um vizinho, no balcão do café, acerca de filmes.
Não se lembrava de um único nome de realizador, de actor, de director de fotografia; e no entanto, falava com imenso vigor acerca dos planos de filmagem; defendia com unhas e dentes que a câmara só deve mexer quando se justifique, e não daquela maneira blockbustiana que acompanha os olhos do protagonista, mesmo quando só está a existir.
Fiquei convicta da sua paixão pela arte – no caso, o cinema; não porque a procurou em livros e revistas para fixar termos técnicos – mas porque procurou dentro de si a razão das suas emoções ao ver um filme. E achou-a.
Quando Marcel Duchamp apresentou Fonte – um urinol de cerâmica, invertido e assinado
R. Mutt – na exposição da Sociedade para Artistas Independentes de Nova Iorque, em 1917, o presidente da sociedade terá então comunicado à imprensa que Fonte «não era uma obra de arte, sob qualquer definição».
Apesar de não ter sido aceite na exposição – ou talvez por isso mesmo – a obra de Duchamp serviu, como nenhuma outra até então, para pôr em causa o conceito de arte.
Escreveu-se, a propósito, na revista The Blind Man, sob o título «O caso Richard Mutt»:
É irrelevante que o Sr. Mutt tenha ou não
feito a fonte com as suas próprias mãos.
Mutt ESCOLHEU-A.
Pegou num objecto vulgar do dia-a-dia,
colocou-o de modo a que o seu significado
útil desaparecesse sob o novo título
e perspectiva – criou um novo
pensamento para esse objecto.
Portanto, uma coisa é certa: foi tão difícil há 100 anos como é hoje uma nova assimilação do conceito de arte.
Um exemplo muito actual disso é a arte urbana – graffiti – que muitos consideram simplesmente ‘lixo visual’.
O conceito de que a obra de arte tem de ser produto das mãos do artista, ou que tem de ser esteticamente bela e tocante, ou ainda que tem que demonstrar mestria do autor face a habilidades que “os outros” não conseguem dominar [o tal ‘jeito para o desenho’ que tanto me irrita, por exemplo] está, então, pelo menos 100 anos desactualizado.
Nas definições mais recentemente debatidas, arte passou a ser um fenómeno filosófico, ou pelo menos intricadamente relacionado com a filosofia do pensamento actual – de qualquer tempo - especialmente no que toca à reformulação de ideias e conceitos, o questionar de temas, [re]lançar novas perspectivas sobre assuntos geralmente intocáveis. Não confundir, no entanto, com provocação pura e simples.
A arte, quer nos entre pelos olhos ou pelos ouvidos, é uma coisa sentimental. Definitivamente, entra-nos pelo coração e, por isso mesmo, difícil de justificar. Eu sei muito pouco sobre arte. Daquela que se decora, se calhar até sei, mas não o suficiente para fazer boa figura nos jantares de sexta-feira. Mas o que eu queria mesmo era ser artista. Eu sei que isto pode soar a sonsice, uma vez que os meus desenhos têm sido entusiasticamente elogiados. Mas, são desenhos, sabem? São retratos, paisagens, objectos urbanos que reproduzo como os vejo, ou os sinto. Aqui e acolá procuro novas plasticidades mas não têm alma de arte. São cópias.
Aqui há tempos, porém, sucedeu algo extraordinário. Pintei o meu primeiro quadro. Para quem o vê, este sim, é uma cópia. Para mim, é a expressão artística na sua forma mais pura: a intervenção sobre um mundo pragmático, procurando a subversão do evidente e a discussão dos temas sociais mais prementes. Dito assim até parece arte…
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Espantoso !
ResponderExcluirGostei!
Moira de Trabalho, poço de virtudes, na escrita e no traço.
Modéstia em excesso.Pecado.
Gostei muito, Moira !
ResponderExcluirDevo confessar no entanto que o Marcel Duchamp não é exactamente um dos meus preferidos, mas o meu gosto é inteiramente muitíssimo discutível...
Lembro-me de estar em Brasília (na UNB) e de ter largado uma cagada numa aula , em sotaque 'tuga' e tudo, e a coisa ainda por cima vem de outro lado, e reza mais ou menos assim, cito de cór...:
O objectivo da arte é mostrar a arte e esconder o artista.
Por acaso até acredito nisso...
O gajo que a disse até passou por aqui perto de onde eu vivo, há muito tempo, mas para hoje chega de 'namedropping'.
:-)
Parabéns artista, quem não tem talento, como eu, limita-se a admirar pessoas como tu e dar-se por feliz por pessoas como vcs. se darem ao trabalho de existir.
:-))
Um dos bons posts da semana, e eles são tantos...
ResponderExcluirSou fã das suas Figuras sem Estilo, só é pena que apareçam tão pouco!
Parabéns Moira!gosto particularmente do pormenor das mãos.
ResponderExcluirPermita-me que lhe faça uma sugestão: afaste-se desses jantares de sexta feira.
...e passe a aproveitar essas noites de 6ª para criar mais umas ( magníficas) Figuras sem Estilo !!!
ResponderExcluirai Moira, quando a comecei a ler até pensei que era aquele senhor comentador que usa uma fotografia, mas quando percebi que estava a ficar deliciada com a leitura quase que advinhei que era a Moira.e não estou nada de acordo com os comentadores de cima.acho que esses jantares de 6ªfeira até lhe podem trazer mais inspiração.como, aliás, se vê.
ResponderExcluirAprendo tanto consigo, Moira!
ResponderExcluirÉ tão clara no seu discernimento e ao mesmo tempo são tão profundas as suas análises!
Até parece fácil!