sexta-feira, 9 de outubro de 2009

IIIIII RECEITUÁRIO DOMÉSTICO IIIIIIIIIIIIIIII Código de Conduta do Perfeito Eleitor


COMO FAZER DO "DIA DE REFLEXÃO"
UM DIA REPLETO DE INFLEXÕES

Estava a correr-me bem o "dia de reflexão" há um par de semanas, véspera das Legislativas, quando...
Antes disso: eu tomara já os devidos cuidados prescritos pelo Código de Conduta do Perfeito Eleitor no que respeita ao "dia de reflexão". Assim, logo ao bater da meia-noite desembaracei-me dos jornais ensopados em sondagens, previsões, presunções, embirrações, crispações, conspirações, suspeições – essa guerra civil de palavras e números disparados à queima-roupa que justificariam quinze dias de reflexão em vez de apenas um. Inibi-me também de aceder à internet porque, é sabido, nesse período corre-se o risco de ficar com o computador chamuscado por força das labaredas que a todo o instante irrompem de sites e blogues. O problema é que, compreensivelmente, ninguém leva a bem que se brinque com certos tiques da família, esquecendo o facto de em todas as famílias (sublinho: todas as famílias) haver por regra um ou outro membro disposto a praticar enternecedoras tropelias como aquela de que se ocupou o anterior capítulo deste Código de Conduta.

Dizia, portanto, que estava a correr-me bem o "dia de reflexão", quando...
Antes disso: organizara o dia por forma a permanecer em casa porque, bem adverte o Código de Conduta, não há reflexão que sobreviva ao circo dos cartazes partidários, com aqueles rostos colossais a travarem-nos o passo, a vararem-nos o espírito com esgares de presciência divina, determinados, preocupados, umas vezes paternalmente risonhos, outras maternalmente ensimesmados. Depois parecem enraízar, são reclamos de boa cepa, perdurando e estiolando ao sol e à chuva largo tempo após o acto eleitoral. Assim, todos os dias, ao sair de casa, deparo-me com um aviso pateticamente irremovível: «Chegou a hora da verdade!». Em coerência e honestidade, os autores deveriam, logo no dia seguinte, aditar à frase algo do género: «Era para ter chegado, mas nem chegou a embarcar por causa da greve dos pilotos da TAP.»

Retomando o fio: ficando em casa, sugere o Código de Conduta que um bom livro ajudará a decidir o voto. Ora eu ia a meio da última obra da minha amiga Clara Pinto Correia, A Maravilhosa Aventura da Vida (fascinante, aproveito para realçar) e optei por prosseguir a leitura. Refastelado, dei conta de que o televisor estava ligado, a médio som, sintonizado na SIC. Apontei o comando para cortar o pio ao repórter que entrevistava um rapagão de cabelo farto, fronha reguila... E foi quando...

Foi quando, no preciso momento em que ia premir o botão, oiço estas palavras assombrosas:
– Contamos, seguramente, com um milhão de votos. Até mais.
Quem manifestava tal inabalável certeza em pleno "dia de reflexão" era o rapagão, figura conhecida, apercebi-me de imediato: o Zé Pedro, dos Xutos & Pontapés que actuariam nessa noite no Estádio do Restelo em mega-concerto celebrativo dos 30 anos de carreira.
Um milhão de votos! Obviamente que naquela ocasião não eram ainda conhecidos os resultados eleitorais, mas existia a quase certeza de nenhum partido alcançar a maioria absoluta. Foi-me irresistível meditar sobre a potencialidade daquele milhão de votos num cenário de coligação com vista à maioria absoluta. A hipótese de o Partido Socialista se coligar com os Xutos & Pontapés tropeçava numa pequena contrariedade... lembram-se?... sim, aquela canção do "Sr. Engenheiro"... Nada de irremediável. O Zé Pedro, além de comendador e reguila é amigo de José Sócrates e até li no Expresso que o mediático rocker lhe telefonou para salvaguardar a inocência da banda: a letra da canção, eu seja ceguinho, afiançou, não visava qualquer objectivo de intervenção política. Sócrates terá respondido: «Pois. Mas, pelo sim pelo não, vocês vão ficar sob vigilância». Por essa razão pareceram fundamentadas, na noite do espectáculo no Restelo, as suspeitas sobre um centro médico ali montado com dez equipas móveis e cinco ambulâncias munidas de inusuais e altíssimas antenas. Que serviam, foi dito, para comunicar com os hospitais em caso de emergência. Pois. Um sobrinho adolescente, fã dos Xutos, esclareceu-me: a banda tem vindo a transmitir, de uma forma mais ou menos criptográfica, a asfixiante realidade. Repare-se neste trecho de uma das canções:
«Uma rede imensa / Super vigilância / Omnipresente…»
Depois, um certo Big Brother previne:
«Sei onde tu estás! Sei onde tu estás!»
(…) «O que tu fazes / o que pensarás…»
Elucidativo. Isto é de causar um arrepio na espinha, como se diz nos romances.

Embalado no melhor propósito da governabilidade do País e do regular funcionamento das instituições democráticas, considerei também promissora uma coligação Xutos-PSD (ou, se se preferir, PSD-Pontapés). Mas não para já-já.
Independentemente dos partidos, aplaudiria a indigitação do Zé Pedro para ministro da Ciência Oculta (outrora designada por Cultura). Não duvido de que daria à pasta uma desejável visibilidade.
Continuei a saborear adornos políticos ainda mais sofisticados. A um nível de comunicações presidenciais, por exemplo, Kalú, o baterista, daria um assessor de elite para pontuar os alucinantes sobressaltos de alma de Cavaco Silva. Oportuna seria, no final das comunicações, a participação de Tim, cantarolando o histórico tema "Conta-me Histórias".

Regressei à terra a tempo de ouvir o final da entrevista. Só então me dei conta do equívoco.
Não se tratava de um milhão de votos.
O Zé Pedro referia-se a vóltios. Um milhão de vóltios para iluminar a grande noite musical no Restelo.

Que pena! Agora que eu começava a ver o País encaminhado...





Pedro Foyos
Jornalista
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3 comentários:

  1. Se calhar vai ser uma solução como esta a escolhida pelo Sócrates para formar governo, porque de outra forma...

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  2. Pior do que está o País, não deveria ficar.

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  3. Pronto, convenceste-me : amanhã fico em casa "em profunda reflexão". E para não ser influenciado vou ter a TV sintonizada no único canal isento do País : a TV do Benfica !

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