terça-feira, 6 de outubro de 2009

O Escuta

Aquele trabalho era de uma sensaboria a toda a prova.
Fazia escutas desde que saíra da tropa, depois
da comissão na Guiné, muitas décadas atrás,
mas nunca tinha vigiado ninguém tão pouco interessante.

Lembrava-se, ainda, do seu primeiro serviço…
Passara dias, semanas mesmo, a ouvir os telefonemas
da Cilinha Supico Pinto, à altura, a dirigente
do MNF- Movimento Nacional Feminino.
O Presidente do Conselho, coisas da idade, metera na cabeça que ela podia ser uma agente moscovita infiltrada.
E ela só a falar de chás canastas, de jantares de beneficência, de viagens às colónias, para distribuir uns cigarritos à tropa fandanga…

Depois da revolução, é que tinha sido um fartote.
Escutara o Costa Gomes a mando do Spínola.
E, depois, o Spínola por ordem do Costa Gomes. Fizera imensos trabalhos para o Otelo.
Ouvira, em pormenor, conversas de tenebrosos banqueiros, empresários perigosos, militares de facções contrárias, políticos reaccionários e, até, uma corista que o general trazia debaixo de olho.
Mas a vida continuou. Nunca lhe faltara trabalho.
Fora ele que descobrira o affaire da Snu com o Sá Carneiro, que despoletara a zanga entre o Zenha e o Soares (ao denunciar que, este último, apelidava o outro de nariz de pica pau), que apressara a saída do Freitas do CDS, estivera por trás do divórcio do Soares (filho), das primeiras suspeitas do caso da Casa Pia ( do qual fora, rapidamente, afastado, quando as pistas se começaram a aproximar perigosamente do Poder) e muitos outros casos, que nem sequer envolviam políticos.
As trafulhices do Vale e Azevedo, ouvidas num telefonema, interceptado com a simples intenção de saber se o João Pinto sempre ia para o Sporting, é apenas um exemplo entre dezenas, centenas mesmo, de outros…

Mas trabalho, enfadonho como este, nunca tivera.
Quando o chefe lhe falou em porem o palácio sob escuta, até que ficou entusiasmado.
Pensou que iria escutar conversas sérias com o Obama ou brejeirices com o Sarkosy, negociatas com o Eduardo dos Santos ou, quem sabe, alguma encomenda que a mulher do Presidente fizesse à rainha de Inglaterra, para aproveitar os saldos do Harrod’s ou dos Selfridges.

Mas, até agora, nada.
Nem conspirações para derrube do Governo nem, ao menos, algum idílio platónico com a amiga Manela, nos corredores do edifício.
Uns telefonemazitos para o Algarve a encomendar mais alfarroba, umas conversas de circunstância, à hora do jantar ”Maria, passa-me o sal …” e pouco mais.

Resolveu telefonar ao chefe, a saber se poderia sair mais cedo.
Andava a chegar a casa tardíssimo e até estranhava que a mulher ainda não lhe tivesse dito nada.
O Presidente depois de ter tentado resolver, mais uma vez com insucesso, as palavras cruzadas da Visão Júnior, dormia há muito a sono solto, na poltrona em frente ao televisor, sintonizado no “ Salve-se quem puder!” enquanto a sua Maria tagarelava com a cozinheira sobre a melhor maneira de fazer farófias.

O telefone do chefe estava interrompido. Nada que ele não solucionasse…
Com um simples click, introduziu-se na conversa.
“..É o que lhe digo, o gajo é um incompetente, e cornudo, ainda por cima.”
Era a voz do Marques, o seu colega mais chegado.
A resposta do chefe foi imediata “ E porque é que julga que o coloquei neste caso de Belém ?. Para o queimar e ter um pretexto…”.
Desligou abruptamente, suores frios a escorrem-lhe pela testa.
Tinha que contar à Odette, a sua mulher ia, certamente, animá-lo.

O telefone de casa estava também ocupado. Repetiu a operação.
“…Mas querido, eu não si a que horas é que meu marido vai chegar. Com ele nunca se sabe,,,”
“Está bem, amor, mas desce só um bocadinho. Estou cá em baixo no carro, no sítio do costume”. O Salvador, vendedor de carros usados do stand lá do bairro…

Cortou a ligação, em silêncio.
Accionou, de novo, os botões necessários, que o conectavam
com o Palácio de Belém.
A Primeira Dama cantarolava uma música do Tony Carreira,
enquanto tirava a maquillagem, na casa de banho.
O Presidente ressonava, sibilante, num sono descansado.
A vida continuava. Nada como as rotinas…

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4 comentários:

  1. Uma das melhores shorts que tenho lido por estes lados nos últimos tempos.
    Já li três vezes e de cada uma, descubro mais pormenores que me fazem dar uma gargalhada
    ( o Vale e Azevedo, o Salve-se quem puder!, a Visão Júnior...).
    O máximo !!!

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  2. Boa sequência com muita graça e talvez com verdade qb....
    O pior é que as escutas de agora já servem para tudo e para todos, envergonhando as de antigamente.
    Eu, como milhares de portugueses, tenho medo do telefone e dos mails, parece que queimam e não sou um perigoso cidadão de consciência suja.

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