sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

2010 : O ano da Segunda Odisseia

O escritor Arthur C. Clarke
foi o primeiro homem
a chegar ao ano 2010.
Mas não havia necessidade.


O que tem de ser tem muita força e Arthur C. Clarke escreveu um livro que comprova o singelo aforismo. Quem viu ou leu 2001 – Odisseia no Espaço (o filme de Stanley Kubrick e respectiva novelização de Clarke) sabe bem que poucas obras de ficção tornariam tão excrescente, como esta, um projecto de sequência. O filme possui um não-fim sublime. Qualquer palavra a mais resultaria supérfula, quebraria a voluptuosidade dos grandes enigmas que desejamos indefiníveis, opacos, insondáveis como sonhos secretos. Todavia, Clarke publicou anos depois 2010 – Segunda Odisseia.
Porfiando numa justificação para a inesperada sequela, o autor desconcerta-nos ao afirmar que a mesma teve origem nos «montes de cartas de leitores que queriam saber o que aconteceu a seguir.» Mais informa ter enviado um resumo a Kubrick. Por «mera cortesia», assinala, mas parece óbvio que a iniciativa correspondeu a uma discreta expectativa de lograr a adesão do cineasta, por uma segunda vez. Adivinha-se o destino que o realizador deu à cópia, pois Clarke esclarece, adiante: «... Eu já sabia que ele nunca se repete.»
O que se passou na realidade é que o escritor jamais conseguiu sobrelevar airosamente o antigo contencioso com Kubrick. A colaboração entre ambos durante os quatro laboriosos anos que demorou a rodagem de 2001 foi muito fecunda mas culminou numa quase ruptura afectuosa. Desde então, sempre que se referia ao cineasta, Clarke dissimulava mal as velhas mágoas. Para ele, a história atingiria o seu zénite normal mediante a comunicação explícita com inteligências extraterrestres. Kubrick, menos tecnológico, menos explificativo, menos racionalista, rejeitou esse e outros cenários descritos pelo escritor na órbita próxima da sua novela The Sentinel, na qual se inspirou a obra cinematográfica.
Kubrick resgatou tão-só a ideia, sem dúvida belíssima, de um astronauta que chega à Lua e descobre, espantado, um mecanismo enigmático, de origem extraterrestre, com a forma de uma pequena pirâmide. Este artefacto (que no filme se transfigurou no famoso monólito negro, ainda mais impressivo) fora ali colocado por uma superior civilização alienígena para aguardar a emergência da Humanidade como um planeta de passagem da espécie. «Até lá», nas palavras do escritor, «estava implícito, seríamos demasiado primitivos para suscitar qualquer interesse.»


Clarke, homem de ciência, histórico inventor do satélite de comunicações, avesso a todo o género de ambiguidades, zeloso cumpridor das normas didácticas vernianas, não poderia aceitar de bom grado as abstracções estelares de um Kubrick ilógico e inconcludente.
Mais tarde, 2010 tornar-se-ia O Ano do Contacto, título adoptado para o filme de Peter Hyams (1984). O ano do finca-pé de Clarke: a odisseia consuma-se enfim na ambicionada comunicação com uma inteligência superior, universal. Um epílogo, portanto, do tema e da trama de 2001, passado pelo crivo virtuoso da normalidade. Como prescreve a cartilha.

Pedro Foyos
Jornalista

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