sábado, 2 de janeiro de 2010

Algumas páginas de glória - Mário Bettencourt Resendes

O cenário que se segue é puramente ficcional, o que não impede a eventualidade de coincidências com realidades, passadas, presentes ou futuras.
Sentados frente a frente, o ministro e o seu assessor de imprensa, ambos estreantes nos respectivos poderes, remeteram-se a uma breve pausa de silêncio.
A face carregada do governante não escondia o incómodo. "Oh homem", disse finalmente o ministro, "deve haver maneira de se conseguir; outros já o fizeram, porque é que eu ainda não tive nenhuma entrevista de fundo?"
Embalado, prosseguiu: "Aqui entre nós, a verdade é que ninguém me conhece. Já fiz algumas tentativas, entro num café, vou a um centro comercial, e nada… um ilustre anónimo. E como as coisas estão, ainda acaba o Governo e eu nem sequer existi."
O assessor ensaiou uma justificação: "Sabe, senhor ministro, é a primeira vez que estou nestas funções, ainda não estou rotinado com os mecanismos que operam deste lado… mas acho que é uma questão de tempo. Deve estar a cair o primeiro pedido…"
O ministro irritou-se e levantou a voz: "Cair, caímos nós, se não tomarmos a iniciativa. Até eu, que não sou jornalista, sei o que é a concorrência selvagem no palco mediático. São demasiados para o mesmo osso… Ouça, se não consegue, peça auxílio a quem sabe. Tenho vários colegas que trabalham com empresas de comunicação eficientes. E já tiveram capa de revista, títulos de primeira página. Enfim, já existem…e há meia dúzia de meses andavam por aí…"
Abandonemos a ficção e passemos à realidade. Sabe-se bem, nas redacções, como é fraca a "carne" de novos membros do quando confrontados com a vertigem dos microfones. Dificilmente resistem à tentação da notoriedade, fascinam-se com os interrogatórios públicos, com a abordagem dos grupos de jornalistas, deslumbram-se com o eco de meia dúzia de palavras de circunstância. Muitas vezes, horrorizados, acabam por perceber que falaram de mais, ou de menos, e ganham cedo lugar na galeria dos gaffeurs.
De qualquer forma, as primeiras semanas de vigência de um Governo não costumam ser pródigas em grandes notícias e é uma boa altura para os media partirem à descoberta dos novos governantes. Se não houver, a nível da direcção do Governo, uma política de comunicação que refreie esses instintos oratórios dos estreantes, multiplicam-se entrevistas de interesse reduzido, em que se sugere, por norma, que tudo vai mudar para melhor, sem se explicar bem como, pouco mais se diz do que repetir as linhas gerais do programa do Governo, mas, enfim, estão ganhas algumas páginas de glória. Os mais ingénuos não resistem mesmo a abrir a porta da sua privacidade e a proporcionar efémera celebridade a agregados familiares que não estão preparados para a sequência da história do capuchinho vermelho e do lobo mau.
O primeiro Governo de José Sócrates estava recheado de pesos-pesados da política. Era gente que conhecia bem a dialéctica da relação com o media e não desperdiçava palavras públicas fora do tempo certo. O próprio primeiro-ministro ganhou, em 2005, nas urnas, uma autoridade política que funcionou, quase de forma automática, como uma linha de orientação em termos de coerência do discurso político do Executivo. Atento, Sócrates não deixava de intervir quando um ou outro deslize poderia comprometer essa coerência.
Os resultados de 27 de Setembro sobrecarregaram Sócrates com tarefas e responsabilidades que estavam diluídas na vigência da maioria absoluta. E nota-se algum défice de coordenação em matéria de comunicação pública ministerial. O que é tanto mais surpreendente quanto este primeiro-ministro foi, na história recente da nossa democracia, aquele que, para o "bem e para o mal", maior sensibilidade evidenciou face ao funcionamento da constelação dos media.
Uma referência de excepção, a terminar, para Isabel Alçada. Herdeira de um dos dossiers mais sensíveis da governação, tem sabido resguardar-se e medir, com inteligência e tacto, as suas escassas intervenções. E por isso está, no mínimo, a ganhar a "batalha da opinião pública" face a direcções sindicais que parecem convencidas de que "o céu é o limite"…

Mário Bettencourt Resendes in Provedor dos Leitores ( Diário de Notícias)

Um comentário:

  1. Pois é MBR, não é só isso a que faz referencia.
    O problema maior é a tal chavenazinha de chá que muito poucos beberam quando pequeninos na vida e na sociedade !
    E por isso nota a diferença na muito tia Isabel Alçada...
    E se recuar bastantes anos na história da Republica, para não se cansar a ir até à Monarquia,certamente me dará um pouco de razão :))

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