sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

O Trauma da Morada - Miguel Esteves Cardoso

Um dos grandes problemas da nossa sociedade
é o trauma da morada.

"...Por exemplo. Há uns anos, um grande amigo meu,
que morava em Sete Rios, comprou um andar em Carnaxide.
Fica pertíssimo de Lisboa, é agradável, tem árvores e cafés.
Só tinha um problema. Era em Carnaxide.
Nunca mais ninguém o viu.
Para quem vive em Lisboa, tinha emigrado para a Mauritânia!

Acontece o mesmo com todos os sítios acabados em -ide,
como Carnide e Moscavide.
Rimam com Tide e com Pide e as pessoas não lhes ligam pevide.
Um palácio com sessenta quartos em Carnide
é sempre mais traumático do que umas águas-furtadas em Cascais.
É a injustiça do endereço.

Está-se numa festa e as pessoas perguntam,
por boa educação ou por curiosidade, onde é que vivemos.
O tamanho e a arquitectura da casa não interessam.
Mas morre imediatamente quem disser
que mora em Massamá, Brandoa, Cumeada, Agualva-Cacém,
Abuxarda, Alformelos, Murtosa, Angeja…
ou em qualquer outro sítio que soe à toponímia de Angola.

Para não falar na Cova da Piedade, na Coina,
no Fogueteiro e na Cruz de Pau. (...)

Ao ler os nomes de alguns sítios – Penedo, Magoito,
Porrais, Venda das Raparigas, compreende-se
porque é que Portugal não está preparado para entrar na CEE.
De facto, com sítios chamados Finca Joelhos (concelho de Avis)
e Deixa o Resto (Santiago do Cacém),
como é que a Europa nos vai querer integrar?
Compreende-se logo que o trauma de viver na Damaia
ou na Reboleira não é nada comparado com certos nomes portugueses.
Imagine-se o impacte de dizer
"Eu sou da Margalha" (Gavião) no meio de um jantar.
Veja-se a cena num chá dançante em que um rapaz
pergunta delicadamente "E a menina de onde é?",
e a menina diz: "Eu sou da Fonte da Rata" (Espinho).
E suponhamos que, para aliviar, o senhor prossiga,
perguntando "E onde mora, presentemente?",
Só para ouvir dizer que a senhora habita
na Herdade da Chouriça (Estremoz).

É terrível. O que não será o choque psicológico da criança
que acorda, logo depois do parto, para verificar
que acaba de nascer na localidade de Vergão Fundeiro?
Vergão Fundeiro, que fica no concelho de Proença-a-Nova,
parece o nome de uma versão transmontana
do Garganta Funda.
Aliás, que se pode dizer de um país que conta
não com uma Vergadela (em Braga),
mas com duas, contando com a Vergadela de Santo Tirso?
Será ou não exagerado relatar a existência,
no concelho de Arouca, de uma Vergadelas?
É evidente, na nossa cultura, que existe o trauma da "terra".
Ninguém é do Porto ou de Lisboa.
Toda a gente é de outra terra qualquer.
Geralmente, como veremos, a nossa terra tem um nome
profundamente embaraçante,
daqueles que fazem apetecer mentir.
Qualquer bilhete de identidade fica comprometido
pela indicação de naturalidade que reze
Fonte do Bebe e Vai-te (Oliveira do Bairro).
É absolutamente impossível explicar este acidente da natureza
a amigos estrangeiros
("I am from the Fountain of Drink and Go Away...").
Apresente-se no aeroporto com o cartão de desembarque
a denunciá-lo como sendo originário de Filha Boa.
Verá que não é bem atendido. (...)
Não há limites.
Há até um lugar chamado Cabrão, no concelho de Ponte de Lima!
Urge proceder à renomeação de todos estes apeadeiros.
Há que dar-lhes nomes civilizados e europeus,
ou então parecidos com os nomes dos restaurantes giraços,
tipo Não Sei, A Mousse é Caseira, Vai Mais um Rissol. (...)
Também deve ser difícil arranjar outro país onde se possa
fazer um percurso que vá da Fome Aguda à Carne Assada (Sintra)
passando pelo Corte Pão e Água (Mértola),
sem passar por Poriço (Vila Verde),
e acabando a comprar rebuçados
em Bombom do "Bogadouro"¹, (Amarante),
depois de ter parado para fazer um chichi em Alçaperna (Lousã)..."

¹ - Bogadouro é o Mogadouro quando se está constipado!!!

Miguel Esteves Cardoso
Enviado por Mário Ortet

Nota do Galo: O talento que MEC tinha, no seu período Drugs, Drinks &Rock'n'Roll, era realmente notável e fez-me recordar um curto episódio da minha Vida que aqui deixo relatado.
Quando cheguei dos Estados Unidos, fui asilar em casa de uma Amiga minha que, pouco tempo depois, me colocou as malas à porta.
Obrigado a arranjar uma casa de um dia para o outro, consegui um pequeno apartamento com vista para o rio, muito simpático, barato, com chão de cortiça, relativamente central, que só tinha um inconveniente...era na Picheleira!
Ainda me lembro de quando me perguntavam onde morava eu responder"- Bem, hum...é na parte de trás da Alameda!".
Mas alguns insistiam"- Onde, nas Olaias?"
E eu, cada vez a falar mais baixinho "-Não, bem...mais abaixo, mais abaixo...".
"-Ah!"- exclamavam os meus interlocutores, triunfantes"- Moras na Picheleira!!!".
E eu olhava à minha volta à procura dum buraco para me enfiar...

6 comentários:

  1. Totalmente verdade.Quando há alguns anos sai de casa dos Pais, que moram em Caxias, para a minha primeira casa alugada em Linda-a-Velha os meus amigos gozaram imenso.Agora que comprei uma casa velha na Lapa, pior do que a outra mas que estou a recuperar, já fui"perdoado" por todos.

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  2. É a snobeira da etiqueta em detrimento do conteúdo...

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  3. Bom... Apesar da minha actual morada ser Londres, mais precisamente Camden Town (possívelmente comparada ao bairro alto) a minha verdadeira origem é a da Damaia e o meu background mais acentuado Carvalho (concelho da Pampilhosa da Serra) onde, para chegar, passamos pela Venda da Gaita e pela Picha.
    Realmente são nomes menos comuns mas dos quais nada me envergonho.
    E para verem como não é só portugal que tem nomes de terras esquisitos, aqui vão umas traduções de terras de sua majestade:

    elefante e castelo, ilha dos cães, arco de mármore, são joão da madeira =), sete irmãs, doca do canário, colina do preto, casas da choradeira, árvore do cérebro, sítio da vaca castanha, freguesia falida,
    casas queimadas, fim do pato, cair de cabeça, vai golfinho, bom som, fiambre e sandes, salto, fiambre bom, cabeça de couro, cidadezinha, sórdido, nova invenção, doze cabeças e gritos.

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  4. Maria,gostei imenso do seu comentário e da sua open mind em relação ás Damaias e Cia.Enquanto a lia tive uma ideia.Que tal uns post cards londrinos tipo Swinging London ou,mais simples,Made in London,para ir contando as suas aventuras por terras de Sua Majestade?
    E já agora está aí temporariamente ou vai ser uma estadia prolongada?A big Hug...

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  5. Maria...e se não fôr pedir muito,pode mandar também umas fotozitas a ilustrar(mas se isso dificultar o envio não se preocupe porque agora com recurso à Internet consegue-se tudo).Bye!

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  6. De eu conheço bem a carne assada, trabalho nesta santa terrinha

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