quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Conhecer - Miguel Esteves Cardoso

Nunca vou ao fim das coisas.
Tudo começa. Nada acaba. Eu não deixo.
No meu sonho, tudo continua, tudo se repete, mesmo que seja preciso interrompê-las de vez em quando.
Tenho medo que acabem. Porque é que se hão-de levar as coisas ao fim?
Amo o incompleto, o suspenso, o atravessado, o interrompido.
Os fins entristecem-me. Viver as coisas até ao fim é matá-las.
E trocá-las por outras novas é traí-las.
Melhor trazê-las sempre, duvidosas e imprevisíveis mas ainda gostadas e presentes.
Se acabo um livro, sinto-me derrotado, fico deprimido, queria que continuasse, e não continua. Reler não é a mesma coisa.
Lembrar não é tão bom como viver. Mas é melhor do que matar.
Repugna-me a ideia das relações humanas que se «esgotam».
Faz lembrar esgotos. Como se um sentimento se pudesse despachar.
É preferível abandonar a pessoa que se ama e guardar o amor que se tem por ela a segui-la até à saciedade.
As pessoas namoram e ficam casadas até se odiarem. Os amigos convivem de mais e começam a chatear-se. As famílias passam tempo de mais juntas, até descobrirem todos os defeitos de cada uma.
Dir-se-ia que as pessoas não suportam ter o coração dependente e então cansam-no propositadamente, para se verem livres do sentimento verdadeiro e bom que sentiam.
Porque é que as pessoas que querem ser livres, independentes e tudo o mais, são aquelas que mais mal aguentam a solidão?
Porque, para o mal e para o bem, habituaram-se a uma companhia constante.
Não percebem que as saudades, os desejos nunca realizados, os sonhos que ficaram suspensos, são a melhor companhia (embora também a mais triste) que se pode ter?
Nunca se deve conhecer nada a fundo. Não falando na pretensão de pensar que se pode conhecer.
Quando se diz «Conheço-o como as palmas das minhas mãos», há sempre uma insinuação feia e negativa.
As pessoas, quando estão tristes ou mal-dispostas, não deveriam expor-se.
É uma falta de respeito pelos outros. Deve-se ser turista nas coisas do amor.
Conservar o deslumbramento. Fechar os olhos quando desmorona a fachada.
A intimidade verdadeira é partilhar a descrença na ilusão.
Um navio visto ao longe. A lua.
Os microscópios são detestáveis. Quem quer conhecer os segredos da casa das máquinas ou a superfície das estrelas? Não é por se estar mais próximo que se está mais próximo da verdade.
A verdade é aquilo em que acreditamos.
Quem acredita ainda na distinção entre conhecimento e fé? Porquê provocar, remexer no passado, fazer perguntas? É como se as pessoas quisessem destruir o que as comove. É esse o sentido da frase de Wilde, que cada pessoa mata aquilo que ama. E tudo o que ele diz sobre a superfície é profundo. Não é só horrendo saber a «verdade» sobre James Dean ou Marilyn Monroe " é um engano arrogante.
As coisas também se percebem, também se amam, à distância.
Para mim, as fotografias de Inês Gonçalves é que são Portugal. Não são as reportagens e as notícias. E não admito que me chamem romântico. Eu sei que por trás daquele miúdo ou daquela árvore há não sei quê e não sei que mais. A Inês também sabe. Por isso é que fotografa como fotografa. Entre o que vê e o que fotografa vai a distância que eu admiro e, não só isso, sei que vai ficar. Entre ser esclarecido e ser iluminado, não há diferença. Mas, se houvesse, eu prefiro ser iluminado. Prefiro a revelação ao registo. Não me custa nada dizer que as fotografias da Inês são o «por trás» do «por trás», já que mostram a alma portuguesa fora do tempo e das circunstâncias, mas, ao mesmo tempo, sem mentir, dentro delas.
Gosto de tudo a que chamam «cerimónia» e «boa educação». Odeio-me quando cedo a ler biografias de escritores que admiro. Tenho a certeza que a chamada «face» pública, que é a obra, que é o rosto que mostram, é não só mais bonita como mais verdadeira que as pesquisas arqueológicas que tencionam revelar o lado particular com a ideia de que esta está escondida, é clandestina, e deita luz sobre o que já se sabe.
Com o tempo, o que é que fica da vida de Platão ou de Camões? O que é que interessa?
Mas as pessoas não devem aguentar o amor, porque, mal amam, logo procuram destruí-lo com a falsa noção do conhecimento. É a mania dos «bastidores». Que interesse podem ter os bastidores duma pessoa ou de uma peça de teatro? O que é que tem a tecnologia do cd a ver com a música? O sistema de canalização de uma casa? Uma ecografia? Não completam nada. São outras coisas separadas.
Em boa verdade, eu não sei por que é que um pássaro voa, nem quero saber. Voar já é tanto. Explicar o voo morfologicamente é reduzi--lo, é fazê-lo aterrar. O que é banal para o pássaro tem de continuar a ser maravilhoso para nós. Walt Disney é uma coisa. A biologia e as técnicas de animação são outras.Gosto das primeiras impressões, sobretudo quando se vão repetindo ao longo dos tempos.
Odeio e evito as descobertas, género «Descobri que Fulano era afinal um malandro». Este afinal, com o seu tom peremptório e arrogante, como se fosse possível definir definitivamente um ser humano, irrita-me. É um acto de amizade não estar sempre a vasculhar e a reinterpretar os amigos. Toda a gente sabe que as pessoas são polifacetadas " mas porque não restringirmo-nos à faceta que conhecemos de que mais gostamos?
A vida é muito complicada e o nosso coração precisa de simplificá-la, sem ter medo de se «enganar».
É preciso resistir à curiosidade e à arrogância.
Conhecer deveria ser só o primeiro passo.

Miguel Esteves Cardoso

2 comentários:

  1. Não fosse o cara ter ficado demasiado gordalhufo para meu gosto, convidava ele para um bed&breakfast no meu apê...

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  2. Esta Sapho é mesmo o máximo mas, independentemente da massa gorda do autor, a verdade é que continua a ter massa cinzenta em quantidade e qualidade.

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