segunda-feira, 14 de setembro de 2009

A justa invenção da toponímia municipal

3. AUGUSTO CABRITA, O REPÓRTER DO SILÊNCIO

Noticiou-se há dias a conclusão dos trabalhos de reabilitação da Alameda Augusto Cabrita, no Barreiro, que adquire a partir de agora o belo nome de Passeio Ribeirinho Augusto Cabrita. Leio num jornal que a população barreirense está feliz com este espaço da zona ribeirinha do Tejo – um espaço aprazível, repousante, onde apetece de facto passear. Onde me apeteceria passear com o meu velho amigo Augusto Cabrita, o artista e o repórter, ambos com um sentido instintivo do mundo enquadrado no formato 30 x 40, de preferência horizontal, porque é o mínimo que devemos conceder ao voo de uma gaivota. Julgo não errar afirmando que ninguém fotografou e filmou tanto o Tejo – e as gaivotas! – como Augusto Cabrita. Em quantidade e sobretudo em qualidade.

Na transição do século passado para o actual extinguiu-se da memória colectiva a geração dos grandes românticos da fotografia portuguesa. Os últimos foram precisamente Augusto Cabrita e José Antunes. Mais nomes (cito tão-só os que já partiram) como Fernando Vicente, António Paixão, Manuel de Sousa e Amadeu Ferrari, entre outros, nada dizem às gerações mais novas, Contudo, anteciparam-se a padrões artísticos futuros – modernos, hoje – e as suas obras continuam a ser uma festa quando revivem numa ou noutra retrospectiva que alguém se lembre de empreender.
Não pode falar-se dessa geração sem evidenciar ao mesmo tempo o espírito de remarcada simplicidade que a caracterizava. Homens solidários, generosos, leais, quase pediam desculpa por nos deslumbrarem com o seu talento. No apego profissional, o seu dia-a-dia pautava-se por uma extrema modéstia. Ensinavam os mais novos com a felicidade de quem lega ao futuro fracções da própria vida e faziam-no com a alegria humilde dos grandes. Os jovens chamavam-lhes "mestres", uma expressão caída em desuso porque, entretanto, os jovens tornaram-se suficientemente jovens para saberem tudo.

Augusto Cabrita foi um dos últimos desaparecidos dessa escola veterana e porventura o que mais se notabilizou pela sua sensibilidade e uma obra imensa com raízes na fotografia e ramificações inovadoras no cinema e na televisão.
Quando Ramalho Eanes, como Presidente da República, o distinguiu com uma comenda, Cabrita, no final, correu para nós, os seus colegas que faziam a reportagem, e em surdina bem-humorada comentou: «Encomendado já estou, só me resta aguardar o momento da expedição... »

Aconselhava os novos a exercitarem o olhar e os reflexos. Angustiava-o ver jovens repórteres enredados em aparatosos equipamentos, com grandes teleobjectivas, filtros, tripé... «Carregam tanta coisa», dizia, «que não sobra espaço para a emoção.»

À reportagem e à criação artística entregava-se com um estilo silencioso. «O mais importante é, primeiro, olhar. Depois, pensa-se e escolhe-se.» Sustentava que as imagens, fossem fotográficas ou fílmicas, deveriam impor-se sem recurso a qualquer outro sentido que não fosse o da visão. O som, por meio de palavras ou de música, era para ele uma excrescência: «O silêncio é a mais poderosa das artes, a arte do olhar». Uma personagem de um dos meus romances medita a páginas tantas: «O silêncio, sim, é poderoso, a ele não se pode tirar a palavra.» A frase foi-me inspirada por Augusto Cabrita.

Pioneiro da reportagem televisiva em Portugal (guerra em Angola, na Índia e o documentário nec plus ultra sobre o terramoto de Agadir), Augusto Cabrita desconcertava por vezes os técnicos da RTP ao exigir que as imagens desfilassem longo tempo sem qualquer som. Mas quem assistiu a essas transmissões inesquecíveis teve oportunidade de corroborar a boa razão do autor: era o silêncio que, na realidade, conferia às imagens uma densidade hipnótica.

Todavia, por uma vez Augusto Cabrita cedeu. Um desafio de João de Freitas Branco e Filipe Branco: Melomanias. Sob este título realizou-se uma série de filmes a preto e branco em que assistimos a maravilhosos "bailados" de imagens ao som da música. Arrebatadora excepção à regra.

O silêncio marcou igualmente a relação de Augusto Cabrita comigo, enquanto jornalista. Dirigi durante anos uma revista na qual predominavam as temáticas do fotojornalismo, da fotografia como expressão de arte e do cinema. Incontáveis vezes frustrou projectos de entrevistas, pretextando que nada de importante tinha para dizer. Mais tarde, como responsável pela revista dominical do Diário de Notícias, continuei a insistir, sem êxito. «Que grandessíssima estopada seria para os teus leitores!» – parodiava ele.

Último quadro, último fotograma destas evasivas memórias suscitadas por uma justa toponímia municipal que vem preservando do esquecimento algumas pessoas formidáveis com quem privei e trabalhei. Eis:
Augusto Cabrita, além de cultivar a arte do olhar, era um talentoso pianista. Tinha em casa um piano de cauda no qual interpretava admiravelmente peças musicais de natureza diversa. Porém, este homem que amava o silêncio e que era ao mesmo tempo músico, ficou surdo. Uma muito longa e dramática doença roubou-lhe a audição.
Um dia tive de deslocar-me em serviço à RTP e um operador de câmara, amigo comum, informou-me:
– O Cabrita está horas e horas, todos os dias, ao piano.
Não percebi de imediato. Tinham-me dito que a surdez dele era irreversível.
Então o colega explicou:
– E toca afinado. Ele não ouve a música mas diz que a vê como se fosse um filme.






Pedro Foyos
Jornalista
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2 comentários:

  1. Pouco conheço da obra de A.Cabrita mas com este texto fiquei com vontade de conhecer.

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  2. Um magnífico captador de imagens paradas e em movimento.
    Um texto sensacional e amigo...

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