sábado, 26 de setembro de 2009

Meditação sobre o Zé Povinho - Miguel Sousa Tavares

O sr. Antunes tem um estabelecimento comercial de esquina entre a Lagoa e Humaitá, no Rio de Janeiro.
Tecnicamente, os brasileiros chamam a isto uma padaria, mas, de facto, é mais do que isso: vende bolos também, sumos, sanduíches, salgados e secos, rebuçados e coisas do género, e vende tempo - a donas de casa que não têm muito mais onde o gastar ou a velhos que já o gastaram todo e por aqui se quedam, de olhos distraidamente fixados na rua, aquela cor amarelada de muito sol e doenças pilhadas que se encontra no rosto de tantos cariocas já velhos.
Vou lá de vez em quando tomar o 'cafezinho da manhã' - um 'misto quente', um 'suco' de abacaxi e uma chávena do horrível café brasileiro, porque o sr. Antunes nunca se abalançou ao grande investimento que representa uma máquina de café Expresso.
E, enquanto espero e sou servido, sento-me ao balcão e observo a cena.

Trinta ou quarenta anos de emigração não trouxeram ao sr. Antunes ou à sua mulher um só laivo de 'sotaque' para suavizar a sua inconfundível pronúncia do português sibilante da Beira. Nem o calor o amoleceu, nem a humidade o vergou, nem os olhos perderam a capacidade de estarem permanentemente atentos a tudo o que se passa no estabelecimento, olhando como se não olhasse, sempre alerta, sempre desconfiado.
Trata as empregadas por 'menina isto' ou 'menina aquilo' e guardou o velho hábito dos merceeiros de aldeia de andar sempre com um lápis preso atrás da orelha, com o qual retoma logo as suas eternas contas de somar e subtrair numa folha de papel que mantém sobre o balcão, assim que acaba de aviar um freguês e se certifica que nada à volta requer a sua atenção imediata.

A 'patroa' (que despreza a farda das empregadas) arrasta consigo um ar de tédio irremediável e conformado e parece olhar sempre para lado algum - ao contrário do marido, que nunca sossega nem se distrai no seu posto de comando.
O olhar do sr. Antunes é duro, desagradavelmente duro.
E basta ver os rostos fechados, silenciosos e tristes das empregadas da casa, para adivinhar o quão pouco estimado deve ser o sr. Antunes, aqui, no seu pequeno reino, no seu bairro, na sua vida de emigrante.

Há vinte, trinta anos, nos tempos da ditadura militar e da inflação a 1000% ao ano, as esquinas do Rio estavam cheias de portugueses como o sr. Antunes, com as suas padarias e confeitarias - que, desgraçadamente para eles, eram o primeiro local onde o 'povão' recebia o embate diário da inflação.
Gerações de brasileiros cresceram a odiar estes portugueses, como se fossem eles a fabricar a inflação e não apenas o pão, como se fossem eles que roubavam a alegria das ruas. E só agora, que a geração dos srs.
Antunes se retirou de cena ou conseguiu enfim voltar para as suas casas com palmeiras, lá, nas aldeias de onde eles ou os pais tinham partido, é que os brasileiros se foram dando conta de que nem todos os homens portugueses são merceeiros e nem todas as mulheres têm bigode.

Coisa impensável então, agora é comum ouvir os brasileiros puxarem pelas suas raízes lusitanas. Cento e cinquenta mil brasileiros imigrados em Portugal (e apesar de nem sempre bem tratados...) e a penetração que alguns portugueses e algumas coisas portuguesas começaram finalmente a ter no Brasil, estão a mudar, devagar mas consistentemente, a imagem de Portugal em terra brasileira.

E, todavia, o sr. Antunes não tem culpa do passado - nenhum deles teve culpa.
Nenhum desse quase milhão de portugueses, absolutamente miseráveis, que entre 1870 e 1930, embarcaram (a maior parte de tamancos e apenas com uma trouxa na mão) para procurarem ali nada mais do que uma hipótese de sobrevivência.
Foram para os cafezeiros do Vale do Paraíba ou para os seringais da borracha na Amazónia - nem Deus conseguiria imaginar em que condições desumanas, mas que poderá adivinhar quem se der ao trabalho de ler esse fabuloso romance que é "A Selva", de Ferreira de Castro.
Alguns, apenas, foram directamente para o retalho ou o negócio dos secos e salgados no Rio ou São Paulo - onde mais tarde se lhes vieram juntar aqueles que a sorte ajudou nas fazendas ou na borracha ou a nova leva dos que foram chegando de Portugal, 'chamados' pelos que já ali estavam.
E em breve, os portugueses, fazendo o que de melhor sempre souberam fazer em qualquer parte do mundo, desde as tabancas de África até aos biddonvilles de França - isto é, comércio e mercearia -, tomaram conta do negócio, nesses anos trinta e quarenta do século passado.

A história é conhecida: de Joanesburgo a Dusseldorf, de New Bedford, Massachusetts, a Belém do Pará, o mundo está ainda hoje profusamente habitado pelo que resta desses emigrantes sem torna que, em tempos para eles gloriosos e já passados, se podiam gabar de serem essenciais ao equilíbrio da balança de pagamentos da mãe-pátria.
Por mais desagradáveis que por vezes possam ser à simples vista desarmada os Antunes do planeta português, por mais que eles (e a RTP Internacional) ainda contribuam para espalhar por aí uma imagem de um Portugal felizmente já defunto, nenhuma, absolutamente nenhuma razão de justiça permite julgá-los ou desprezá-los pelo que quer que seja.
Eles foram os portugueses que a pátria rejeitou, que viveram uma vida toda sem pátria, que morreram, muitos, longe da terra cuja ausência nunca conseguiram sarar.

Penso nisto, enquanto tomo o meu cafezinho da manhã no estabelecimento do sr. Antunes e meditando no que tinha lido antes de vir para cá, na net: os comentários online de leitores de dois jornais portugueses à campanha eleitoral em curso.
Não sei francamente, que tipo de amostra representarão eles dos portugueses de Portugal.
Não faço ideia, não me atrevo e nem desejo especular.
Mas ali encontro, derramados em todo o seu esplendor (e como em tantos outros sites e blogues da net), os dois piores defeitos, se não mesmo características, do portuguezinho: a inveja e a cobardia.

A inveja dos medíocres para com os que se destacam ou triunfam, e a cobardia dos anónimos, dos que só têm coragem quando o inimigo está de costas ou a mão que atira a pedra é escondida.
Já o disse uma vez e já o penso há muito: a net e o seu anonimato garantido parecem inventados de encomenda para servirem os piores defeitos dos portugueses.
Não que a política ou os políticos não mereçam tantas vezes desconsideração ou mesmo repúdio.
Mas o teor e a arrogante ignorância destes comentários, a viscosa inveja que deles transparece sem subterfúgios, o tom de ofensa e calúnia pessoal com que tratam qualquer político, as escabrosas difamações pessoais como argumento de razão, são simplesmente deprimentes e chegam a ser revoltantes.

Não conheço nenhum povo que trate assim o poder e os seus governantes, nenhum que tenha a soberba de achar-se sempre melhor, infinitamente mais sério e mais inteligente do que os seus governantes.
Palavra de honra que, embora tantas e tantas vezes eu próprio me irrite e revolte com a política e os políticos, custa-me perceber como é que alguém ainda tem vontade de fazer política em Portugal: eu não aguentava nem quinze dias!

Repito que ignoro o que valem estas amostras ou as conversas de café que escutamos.
Mas convém não esquecer que esta é a mesma gente que, enquanto amochava silenciosa
e obedientemente durante cinquenta anos, fazia do Zé Povinho o herói nacional,
símbolo da coragem cívica.
Não percebendo que o Zé Povinho representa o pior de Portugal: o tipo que faz manguitos aos poderosos - não por serem poderosos, mas por os invejar.
E que só o faz pelas costas.
Porque, pela frente, come e cala, não arrisca nada de nada e vai para a net destilar inveja
e despejar insultos sobre todos os que acha que ocupam o lugar que, por direito próprio, deveria ser seu.
Ao contrário dos emigrantes, estes são auto-rejeitados de pátria.

Miguel Sousa Tavares in Expresso

15 comentários:

  1. Por costume, não estou de acordo com o que diz e escreve MST, um aristocrata nascido em berço de oiro, pretencioso e que se julga senhor da Verdade, e desta vez, confirma-se a regra.

    Será verdade que os portugueses, alguns portugueses, invejam o seu semelhante que se destacou em alguma área - desporto, artes, política, etc- e que o criticam apenas por isso.

    Mas actualmente as conversas e queixas de cafés, ou na net, são porque as condiçõe reais de vida das pessoas atingiu o nível mais baixo de sempre e essas pessoas não têm perspectivas para si nem para os seus filhos.

    Nem todos podem, sem diminuir o mérito do MST como escritor, ir tomar o "cafézinho" ao Brasil...

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  2. Eu, pelo contrário, é a primeira coisa que leio, todas as semanas, no Expresso.
    Gosto do que ele pensa, embora nem sempre esteja de acordo, como ocorre nesta crónica...

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  3. MTH, "pretensioso", vem de pretensão, escreve-se com s.

    As nossas criancinhas estarão todas entregues a ignorantes como tu ??

    Eu tenho também as minhas próprias razões para achar o MST um asno, mas isso não vem ao caso.
    Achas que ele tem culpa de ser filho da Sophia de Mello Breyner, e de ter brincado onde agora é Serralves ?? Ou é só despeito e "pêcêsice" avulsa ???


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    Quando eu vivi na Gávea, logo ao lado da Lagoa Rodrigues de Freitas , e um bocado antes de Humaitá (e Botafogo), todos os tasqueiros tugas se conheciam pelos 'rodapés' em azulejo (às vezes era linóleo...), mas não pelo sotaque.
    E os mais interessantes tinhamcaldo de mocotó (google is your friend) ao fim de semana.

    E o café é perfeitamente decente, só que os brazucas o fazem de arábica (sem robusta) e portanto bebem 20 ao dia,, porque 'sabe' a mais fraco.
    Mas não é nada mau... just my 2 cents

    Os meus amigos brasileiros começavam sempre por contar 'anedotas de português --- faz parte... --- mas acabavam em contar anedotas de brasileiro, que são infinitamente mais engraçadas.



    Quanto ao resto da 'coisa', passo, senão estava aqui toda a tarde.


    Haja Deus !

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  4. hoje é um dia de reflexão e como não há notícias sobre o que se vai passar amanhã, resolvi passear-me na blogosfera. eis senão quando deparei com este galodebarcelosaopoder. devo dizer que depois do que espreitei não dei o meu tempo por mal empregue.também vos acho muita graça a todos, quer dizer uns mais do que outros, há mesmo alguns que me enervam um bocadinho, mas nada que me faça não voltar aqui.

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  5. Caro Alvega, costumeiro animador deste blogue e douto navegante da blogosfera, como poucos:

    É com particular entusiasmo que tenho vindo a apreciar a contenda que disputa com MTH.

    É sabido o perfil "escasca pessegueiro" da senhora, autora de alguns dos mais revoltados comentários deste Galo.

    Não podemos negar-lhe, contudo, o seu enorme rigor de opinião, a convicção dos seus ideiais e, em última análise, a coragem que usa para pôr tudo escarrapachado (aqui neste caso)'branco no preto'.

    E, apesar do meu apelido ser Cobardola (nascido Anónimo Manuel dos Santos Cobardola), não posso deixar de saltar em sua defesa - que certamente não precisará, mas cá fica - pela correcção que fez ao seu português no comentário acima.

    Além disso, tem por hábito a MTH expressar-se num correcto português - sendo até professora não sei de que matéria - mas fá-lo sempre de modo seguro e com conteúdo análogo.

    Um lapso, uma gralha, um erro ortográfico, não desfaz a reputação de um escritor, tanto como ao que o precipitadamente o corrige, caro Alvega.

    Diz o provérbio «quem tem telhados de vidro não apedreja os vizinhos» - e tem o povo razão.

    Se, como diz, é "anglófono de carteirinha" percebe-se que tenha uma inusitada mania de acentos mal colocados - "fôr", "pôrra", "pôdres" e "môça" não levam acento circunflexo; assim como qualquer advérbio de modo não leva acento uma vez que a sílaba tónica é a penúltima - "men".

    Também "vês" não é sinónimo de "oportunidade" mas sim a 2ª pessoa do singular do presente do indicativo do verbo 'ver', pelo que quando quiser dizer "em vez de..." deverá optar pela grafia adequada.

    Neste contexto, e feita a apologia que não me foi encomendada pela visada - a qual não conheço sequer - resta-me pedir-lhe desculpa pelo atrevimento de o lembrar desta condição que é sermos humanos e estarmos, portanto, sujeitos ao erro.

    Mas que uns erram mais que outros, ai isso é verdade...

    Com os melhores cumprimentos,
    Este seu criado.

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  6. estou a gostar cada vez mais de andar por aq ui. é um bocado como quem apanha um comboio em andamento mas ainda bem que não é o tgv. já tinha reparado que essa MTH, que tem nome de autoestrada de inglaterra, desperta alguns ânimos. é divertido, mas assim a quente o Alvega, não sei mas colhe a minha simpatia.não que seja importante para vocês, mas poder sentir logo umas simpatias dá-me gozo.

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  7. Hey Anónimo Cobardola, a minha ideia era só fornicar os cornos à senhora... afinal das contas isto é só um blog do/a google, ninguém se arrisca morrer... :-)


    Valeu ??

    Obrigado pelo post, vc. sabe do que fala... :-))

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  8. Isto 'tá bonito, está!
    Uma no cravo, outra na ditadura...
    Ai! Cala-te boca ue hoje é dia de reflexão.
    À conta disso enchi a casa de espelhos...

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  9. Benvinda maria alice, acho que o Johnny ficará encantado de a ter como leitora, e ainda mais se continuar a comentar. :-)

    Eu por mim fico. :-))

    Substância: a MTH é como as moscas, faz parte da vida.

    Nem todos podem ser lindos como era o Álvaro Cunhal, nem todos podem ser alunos de 19/20 como ele (e também o Jorge Miranda, o Guterres, o Zé Mariano, etc.)

    Como diria o Boris Vian ("Et on tuera tous les affreux", 1948), se todos fôssemos iguais a vida era um enjôo...
    ;-)

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  10. Magnifico !
    Caro Galo estamos todos felizes com estas contendas.
    Isto diz-nos muito.

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  11. Por uma vez...

    Será verdade que os portugueses, alguns portugueses, invejam o seu semelhante que se destacou em alguma área - desporto, artes, política, etc- e que o criticam apenas por isso.

    Mas actualmente as conversas e queixas de cafés, ou na net, são porque as condiçõe reais de vida das pessoas atingiu o nível mais baixo de sempre e essas pessoas não têm perspectivas para si nem para os seus filhos.



    MTH, tens um abaixo-assinado onde eu possa escrever a minha ?

    Ou 'vocês' já não funcionam assim ?


    Mas não te esqueças, o mundo está mau para todos, e de pernas para o ar...
    :-(

    Boa bola !

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  12. QUEM É MHT?

    PAREM DE FALAR MAL DE MST,JÁ CHEGA DE TANTA INVEJA.
    SERÁ QUE OS TUGAS NÃO TÊEM MAIS NADA QUE FAZER SE NÃO METEREM-SE NA VIDA DOS OUTROS???

    MARIA JOSE FERREIRA

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  13. Ai! Não precisa gritar MJF!
    Tire lá o CAPS LOCK que aqui somos todos pessoas educadas e damos a vez uns aos outros.

    E, na minha vez, vou dissertar:

    Miguel Souda Tavares, é o autor do texto que encabeça este post.
    Na minha humilde perspectiva, sendo ele jornalista, escritor, comentador, cronista e até actor, é aquilo que, com propriedade geralmente se designa de FIGURA PÚBLICA.

    Parece-me, no entanto, que por aqui ninguém tem INVEJA de figuras públicas pelas razões que agora me ocorrem:

    - têm vidas muitos chatas, cheias de compromissos ora nos estúdios de Carnaxide, ora nas esplanadas do Rio;

    - têm que namorar com figuras igualmente públicas, o que diminui grandemente, o leque de opções, recaindo, geralmente, em segundas escolhas;

    - por simpatia, naturalmente, têm que beber um ou dois ou mesmo três copos nas várias festas por onde vão passando, na mesma noite, o que, como é sabido, dá cabo da voz e da pele;

    - têm que acompanhar as equipas de produção e realização de novelas que podiam ser mini-séries de 3 episódios [se fossem realmente baseadas nos romances escritos que lhes deram origem] por países extramente cansativos, quentes e buliçosos;

    - por fim, têm que dizer mal, e quando digo mal é mesmo MAL, de tudo e de todos, sem pudor, sem educação e sem elegância [ainda se tivessem elegância!...] sempre que aparecem na televisão para comentar os pequenos episódios deste pequeno país.

    Como vê, MJF, é muito chato ser figura pública e ninguém, no seu pleno juízo, terá inveja de quem quer que o seja.

    Agora, MJF, metermo-nos na vida dos outros???
    Credo!!!
    Isso não.
    Para isso temos o Miguel Sousa Tavares que se mete em todos os cantinhos deste rectângulo e, pelos vistos, do triângulo lá de baixo!

    Post Sciptum - Se investir um pouco de tempo a ler os comentários deste post, rapidamente saberá quem é MTH; mas não, é mais fácil disparar em CAPS LOCK que ler...

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  14. Moira, se não existisse palavra de honra que eu tentaria inventá-la...
    :-]

    P.S.
    a outra nem deve saber o que é o botão Caps Lock, e que na i-net é indelicado gritar...
    Conheço sites em que ela seria automáticamente expulsa --- pelo próprio 'script', é fácil de fazer o 'mod' para isso... --- mas a "punição" dela devia era ser recitar o "Equador" e/ou outro durante umas 24 horas...

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  15. ACREDITEM QUE ADORARIA ESSA PUNIÇÃO,MAS COM A CONDIÇÃO DE MST SER O JURI,MAS AINDA ASSIM PREFERIA O «SUL»,LI-O 4 VEZES.
    EM RELAÇÃO ÁS MAÍUSCULAS,SABEM,FIQUEI «PITOSGA«
    DESDE QUE FUI OPERADA NO SANTA MARIA.
    PASSEM BEM...

    MARIA JOSE FERREIRA

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