terça-feira, 24 de novembro de 2009

Em louvor das mulheres portuguesas que "fazem ciência" às escondidas do País

Uma única coisa falhou: jamais o futebolista
Ronaldo pronunciou o nome de Mónica
nas proximidades de um microfone.

Sim, tenho várias famílias ideológicas. Com dificuldade as ordenaria segundo uma escala de importância na minha vida, mas, tendo de o fazer, não duvido que as Ciências da Natureza ocupariam um lugar preponderante.
Os acasos do descaso cedo me levaram para o jornalismo, contrariando sonhos adolescentes de ser biólogo. Por fortuna obtive mais tarde um bom acolhimento por parte de notabilíssimos académicos que me reconhecem na qualidade de "amante da causa", permitindo que o prego não-académico que sou se mantenha à tona de água, ou seja, participe e conviva como membro da comunidade. Vejo-me aldeão deslumbrado e grato na grande cidade dos sábios.
A data de 24 de Novembro (nascimento de Rómulo de Carvalho / António Gedeão, o cientista e o poeta representados no belo cartaz aqui reproduzido) está sempre, pelo menos há dez anos, vivamente anotada na minha agenda. Hoje, portanto. Dia Nacional da Cultura Científica. Desta vez a grei da investigação científica vive moderadamente expectante dos resultados de um acontecimento julgado relevante. Durão Barroso acaba de apresentar em Bruxelas o esperado Manifesto da Criatividade e da Inovação que integra entre os seus enunciados o de aumentar a capacidade e qualidade da investigação científica. Isto possibilitará, dizem-me os mais confiantes, que cientistas portugueses acedam com maior facilidade às redes europeias de excelência. Numa palavra, poderão "fazer ciência", melhor investigar – caminho tão escarpado em Portugal por motivo dos parcos financiamentos.
Pouca gente imaginará o número surpreendente de cientistas portugueses que estão a "fazer ciência" no estrangeiro. Homens e mulheres. Estas, contudo, encontram-se em crónica desvantagem na lusa percepção de tal realidade. Perturba saber, como foi demonstrado há um ano, que o simples conceito de investigação científica desempenhada por mulheres é estranho a uma parcela apreciável da população portuguesa. Já se aceita, enfim, que uma mulher conduza um táxi, até um autocarro, mas... conduzir um foguetão... essa coisa do outro mundo chamada ciência... Ciência a sério?... Alto lá!
Regredimos ao século XIX, à pré-história de Madame Curie. Que desgraça.
A verdade é que as mulheres cientistas portuguesas são milhares, dentro e fora do País, não raro chefiam grandes equipas e os seus nomes surgem nas publicações internacionais da especialidade assinando artigos de referência. A nossa comunicação social, no afogadilho dos mil e um casos sensacionais de cada dia, de cada hora, da última hora e da hora que há-de vir, esporadicamente pica o ponto quando um cientista português é distinguido. Por razão obscura, inexplicável (porquanto, na actualidade, em geral o sexo feminino predomina em muitas redacções), afigura-se-me que, tratando-se de uma mulher, nem um sucinto eco se ouve ou lê. Gostaria de estar enganado mas é fácil observar que, com uma ou outra excepção, o País ignora as suas concidadãs cientistas. Uma dessas excepções – e muito me apraz referi-la – é Clara Pinto Correia (também uma notável divulgadora, já o notei aqui há semanas). De bom grado citaria mais uma ou duas dezenas, porém hoje destacarei Mónica Bettencourt-Dias. Alguém sabe quem é? Pois bem: Mónica recebeu uma espécie de "prémio nobel" da ciência europeia (o Eppendorf, abrangendo cientistas com menos de 35 anos) – atribuído pelas suas investigações na área da biomedicina, desenvolvidas sobretudo em Londres e Cambridge. Depois, a Organização Europeia de Biologia Molecular reconheceu-a merecedora de um financiamento de cinquenta mil euros em apoio ao seu trabalho. Falta dizer que, para além da candidatura de Mónica existia mais de uma centena e apenas dezassete foram seleccionadas. Uma única coisa falhou: o futebolista Cristiano Ronaldo jamais pronunciou o nome de Mónica nas proximidades de um microfone. Isso bastaria para que Portugal a ovacionasse e considerasse exíguo o "prémio" de cinquenta mil euros, porque, que raio!, então uma mulher daquelas não merecia cinquenta milhões?!

De entre a infinidade de dias mundiais, internacionais, nacionais – nenhum contempla a mulher cientista. Sou avesso a esse género de celebrações classistas e sexistas, mas, por uma vez, aplaudiria a instituição em Portugal de um temporário Dia Nacional da Mulher Cientista. Pelo menos nesse dia a população aperceber-se-ia de que habitam dentro e fora do País milhares de concidadãs admiráveis cuja existência nem sequer é pressentida. E já sabemos que não podemos contar com Ronaldo.


Pedro Foyos
Jornalista
A seguir, sobre o mesmo tema,
uma crónica bem humorada:
"Como entender o mundo complexo
da investigação científica".

10 comentários:

  1. Os discursos masculinos mesmo quando parecem defender os direitos femininos são, muitas vezes, paternalistas.
    Este pequeno texto não o é. Parabéns, Pedro F.

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  2. Mas nesta mundo atrasado (não só Portugal) o football é que conta...
    Muitos de nós, felizmente, seguimos com apreço o percurso dos cientistas portugueses, que formados nas nossas universidades ou no estrangeiro, têm promovido trabalhos de excelente valia para a evolução da ciência. É meu sobrinho um dos mais brilhantes cientistas na área da genética; tenho uma jovem amiga que é investigadora na área da biotecnologia. Olhemos para os jovens do IST, do IPATIMUP, Universidade do Minho, Beira Interior, entre outras. Muitas raparigas, no meio deles! Muitos e muitas são bolseiros em Laboratórios e Universidades nos EUA, Londres, Suécia, Paris, África do Sul. O que é triste é que não haja abertura financeira, em Portugal, para lhes oferecer condições de trabalho... Mas viva o Dia Nacional da Cultura Científica! Homem ou mulher!!!

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  3. Como mulher e como investigadora acreditada pela FCT, devo dizer que não me revejo nestas acções publicitárias.

    Que me perdoem, mas é assim mesmo que vejo as coisas.

    Cair na tentação de comparar os triunfos de um futebolista com os de um[a] cientista é algo que não faz o menor sentido.

    Os futebolistas são pagos para o espectáculo; são entertainers profissionais e tiram o maior [melhor?] partido disso.

    Os cientistas são profissionais do backstage e têm a noção de que o seu trabalho, sendo fundamental e provavelmente muito mais abrangente que o futebol nacional, não existe como fenómeno de massas.
    Não podem nem querem fazê-lo sob as luzes dos holofotes. Requer minúcia, requer concentração absoluta. Não podem estar expostos como um futebolista.

    E não é por terem menos cobertura mediática que são menos eficientes ou mesmo menos felizes.
    Pode dar-se o caso - como é comum em Portugal - de não disporem das verbas que realmente precisariam para prosseguir nas suas investigações. Esse dinheiro, na verdade, circula noutros meios, nomeadamente no da 'bola'.

    E a falta de dinheiro geralmente implica resultados menos conseguidos ou tardios.

    O reconhecimento dos cientistas, porém, faz-se dentro dos meios em que estão inseridos. Não são meios tão públicos como o futebol, é certo, mas nunca poderão sê-lo na medida em que as disciplinas científicas não são do domínio nem do agrado público - ao contrário do futebol que, como é sabido, tem um treinador de bancada a cada esquina.

    Existe reconhecimento, sim, como é o exemplo da jovem cientista galardoada. E se pessoas como nós - humildes comentadores do Galo - sabemos disso, outras haverá que também o saberão e rejubilarão com isso. Provavelmente, não serão as mesmas que sabem o nome do novo treinador do Sporting, mas isso é outro 'campeonato'...

    Agora, não esperemos ver a malta por aí com T-shirts a aplaudir - Mónica Bettencourt-Dias ÉS A MAIOR! Nem a própria Mónica, suponho, quereria tal coisa.

    Só os meus dois centavos...

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  4. Agora aqui vêem os meus:

    (...) "Pouca gente imaginará o número surpreendente de cientistas portugueses que estão a "fazer ciência" no estrangeiro. ...(...)"

    lol !!


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    A estratégia, quando 'funka', o que nem sempre acontece:

    Um/a gajo/a vai primeiro fazer nome/currículo lá fora, e depois algum assessor do labrego que estiver de serviço lê o o nome numa publicação qualquer.

    Aí o dito labrego encomenda a outro assessor qualquer uma cartinha a dixer "Ah, mas vc. não é 'tuga', não quer vir para cá ajudar-nos a............... "(esta parte é variável, conforme o labrego e/ou o assessor.)

    O tal gajo/a pensa no assunto, na vidinha, na descendência (se houver), nas saudades, e depois responde eventualmente: "Sim, mas... (segue-se uma lista de condições/exigências)

    O referido labrego pega noutro assessor, encomenda-lhe um "estudo" (que sai normalmente caríssimo, but that's life) e depois "decide", para um lado ou para o outro.

    Isto já era assim no tempo do Eça, ou mesmo se calhar antes, pouca novidade aqui no rectângulo...

    :-)

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