quarta-feira, 25 de novembro de 2009

O Intelectual

Adorava livros.
Respirava o pó dos velhos volumes
encadernados em carneira, com o deleite
que muitos encontram no cheiro a maresia,
na relva acabada de cortar, na terra molhada
ou numa macarronada a sair do forno.
Os livros ocupavam-lhe completamente a casa,
que já de si não era muito grande.
Ensaios filosóficos,
espreitavam por debaixo da cama.
Tratados de psicologia amontoavam-se
por cima do roupeiro, guarda fatos,
como ele ainda lhe chamava.
Romances e peças de teatro enchiam
o que, antes, fora um louceiro.
Milhares de volumes no corredor,
outros tantos na cozinha.
Na casa de banho, as obras menores,
livros oferecidos por pessoas
com outras sensibilidades literárias.
Mas que ele guardava na mesma,
com o amor possessivo e enciumado que não
o deixava emprestar uma simples brochura,
oferecer os livros repetidos a uma
qualquer biblioteca, enfim, ganhar algum espaço,
coisa que já lhe começava a faltar.

Há muito que só saía para ir às suas livrarias
de eleição, aos leilões de livros antigos,
ao lançamento de novos títulos.
Passava o dia a ler e não tinha tempo
para amigos ou familiares.
Sabia de cor milhares de títulos, autores
e até o nome dos tradutores dos poucos exemplares
que não adquirira na língua original.
Recitava poemas de cor, vibrava com
os amores romanceados,
perdia-se nos conceitos filosóficos mais clássicos,
extasiava-se com as teorias mais avançadas.

Até que um dia, viu com algum espanto,
misturado com prazer
que a sua cara tinha adquirido uma textura de papel,
amarelecida, estaladiça como um pergaminho.
Reparou que os sulcos finos que lhe cortavam a cara
pareciam linhas em Times corpo 8.
Que o pescoço tinha a consistência
de uma lombada com nervuras a ouro.
Que o cabelo, longo como usava há muito,
esvoaçava quais folhas de papel bíblia.

Ao lavar a cara, temendo que estivesse a sonhar
esta amoleceu e rasgou-se
em míriades de pedaços de papel.

Três dias depois, a D.Olinda, a mulher-a-dias
varreu toda aquela lixarada para debaixo da cama.
Como fazia habitualmente.

5 comentários:

  1. J. se o presidente da república descobre que andas a escrever sobre a merdosa da vidinha dele, ainda acabas em Custóias ou por aí...

    :-]]

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  2. Imaginação, sensibilidade e espírito atento!
    Então não é que as pessoas, à custa de viverem anos e anos com as suas pessoas de estimação, os seu bichos de estimação, os seus tesouros, adquirem os seus tiques, os seus traços fisionómicos? Por que não dos livros???

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  3. Ainda bem que a D. Olinda não trabalha cá em casa...
    Varrer o lixo para debaixo da cama???!!!

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