Há muito ligada, no meu espírito, a uma coreografia de Pina Bausch, criada para a EXPO 98, em Lisboa - Mazurka Fogo - muitas vezes me interroguei sobre que magia tão especial a Ilha do Fogo teria exercido sobre aquela Mulher para, dela e também da sua música, ir retirar tanta e tamanha inspiração. De facto, para além das muitas "caricaturas" que nos dá das gentes de Lisboa, existe em "Mazurka Fogo" uma força telúrica de olhares e sentires nascidos naquela Ilha. Foram precisos mais de dez anos, mas creio que, finalmente, percebi...
A Ilha do Fogo é um lugar mágico
É uma multiplicidade de olhares onde cabem os nossos cinco sentidos todos, e onde é possível ouvir o silêncio, cheirar a bruma, saborear o verde do milho, tocar o céu azul, ver o frio e o calor...
É uma terra de gente cheia de morabeza, que herdou dos rios de lava negra das erupções de 51 e 95, a grandiosidade esmagadora daqueles desfiladeiros, a descer até ao mar para, lá no fundo, se fundirem com as longas praias de areia preta e com o branco da espuma das ondas.
São falésias íngremes que saem do mar e que se elevam até à altura das nuvens, dando à paisagem um aspecto ameaçador, como se de uma fortaleza se tratasse, daquelas onde poderia esconder-se o maior dos criminosos...
É, também, uma terra de enormes contrastes.
Até mesmo no tempo que faz.
Cá em baixo, durante todo o dia, o calor não dá descanso.
No primeiro passeio, da parte da tarde, à medida que fomos subindo e nos embrenhámos numa zona de floresta da Ilha - a zona norte, até à cidade de Mosteiros - a fazer lembrar a Serra de Sintra, crescem as acácias, os jacarandás, os eucaliptos, e a erva, as flores e o musgo saltam das pedras e das paredes rochosas da estrada, pelo meio de um nevoeiro inesperado e de um frio que fazia desejar muito os abafos que, nenhum de nós, tinha levado consigo...
O Vulcão, ao cair da noite, lá se vislumbra, muito em cima, rodeado de nuvens negras, fantasmagóricas, puxadas por um vento gelado, ameaçador de uma tempestade tropical, que nunca chegou a acontecer.
À noite, no hotel, um jantar revigorante com muito queijo e vinho di terra, uma lua cheia para iluminar uns mergulhos na piscina e a Brava, lá mais ao longe, com as luzes a tremerem na imensidão daquele velho oceano...
No dia seguinte, bem cedo, a promessa do Sr. Lucindo, o motorista da nossa Hiace, foi cumprida.O sol brilhava na Ilha inteira. Por alguma razão, no vidro traseiro, um grande placard rezava: "Tudo posso, naquele que me fortalece. Deus é fiel"
E a subida começou.
Verde, terra, lugarejos, crianças, lava e, por fim, o momento tão esperado: o Pico do Vulcão, mesmo no meio de duas acácias.
Mais acima, o "monstro" negro, envolto em silêncio e recortado naquele azul brilhante do céu. O Nada e, simultaneamente, o Infinito, a fusão com aquele Todo, o isolamento, a sensação de me ter deslocado para outra galáxia, a convicção de que tudo aquilo não está ali por acaso, que foi criado por um ser omnipotente, que pode oferecer-nos todo aquele espectáculo em troca de uma destruição, possível a qualquer momento, numa terra que é, literalmente, um vulcão que ainda está em actividade.
Insegurança? Medo?
Não.
Exaltação pelo mistério do desconhecido!
Exaltação pelo mistério do desconhecido!
O passeio continua e, mais adiante, de novo a visão inesperada.Para lá dos rios de lava, e entalada de encontro a uma enorme muralha rochosa, que atinge os mil metros de altura - a Bordeira da antiga cratera - uma terra fértil onde se cultiva o vinho, a macieira, os marmeleiros. É Chã das Caldeiras, onde o verde brota da cinza, da lafite do vulcão.
A população da zona cultiva as suas vinhas de vinho Chã, branco e tinto - um líquido escasso e precioso, sem adição de químicos - e, unidas numa Cooperativa Agrícola estabelecida, até há pouco, com a cooperação do Governo Italiano, prepara o futuro dos filhos (conheci um homem que tem 54...), esperando que toda aquela cinza se transforme numa riqueza que lhes propicie dias melhores.
No avião, de regresso a Santiago, a visão daquela Ilha provocava-me já muita sodade, nascida, certamente, daquele mesmo enamoramento de que fala Alberoni...
No avião, de regresso a Santiago, a visão daquela Ilha provocava-me já muita sodade, nascida, certamente, daquele mesmo enamoramento de que fala Alberoni...
É também a Música - a coladera, o funaná, o talaia baxu, a mazurka...
Pedro Almodóvar, no seu magnífico filme "Fala com Ela", também ele feito de desmesura e intensidade, utiliza na banda sonora uma mazurka - Raquel - maravilhosamente interpretada por Bau, o músico do Cavaquinho, do Violão e da Guitarra de dez Cordas, que fabrica, artesanalmente, os seus próprios instrumentos.
Pedro Almodóvar, no seu magnífico filme "Fala com Ela", também ele feito de desmesura e intensidade, utiliza na banda sonora uma mazurka - Raquel - maravilhosamente interpretada por Bau, o músico do Cavaquinho, do Violão e da Guitarra de dez Cordas, que fabrica, artesanalmente, os seus próprios instrumentos.
Curiosamente, já na cena final do filme, quando Alícia e Marco se enamoram num teatro de Madrid, é à representação de Mazurka Fogo, de Pina Bausch, que estão a assistir...
Deixo-vos, neste pequeno vídeo, a música de Raquel e algumas - muito breves - imagens da coreografia que Pina Bausch, tão magnificamente, criou. Os bailarinos entram do lado esquerdo do palco, abraçados pela cintura, elas de costas, e a Mazurka flui, flui...
http://www.youtube.com/watch?v=TqUr3dpopNc&feature=related
Pina Bausch, que passou algum tempo na Ilha do Fogo, sempre "sentiu" o que fazia...
http://www.youtube.com/watch?v=TqUr3dpopNc&feature=related
Pina Bausch, que passou algum tempo na Ilha do Fogo, sempre "sentiu" o que fazia...
Contessa
Enquanto preparei este "post", lembrei-me, várias vezes, da Moira de Trabalho!
Não gostaria que ficasse a pensar
que a Ilha do Fogo é só pó, cinza, e mais nada...
Um belo post de viagem, sem os tiques e maneirismos que avultavam em outros mais antigos, da mesma autora.
ResponderExcluirAcho só excessivas as referências culturais
( que parecem exibicionismo) mas que, no geral,até estão bem integradas.
Parabéns, portanto...
Fascinante!
ResponderExcluirMuita sensibilidade na sua escrita e nas fotos apresentadas. O que lhe dá mais cor, ainda, é precisamente o cruzamento de situações - a natureza, as vivências, as recordações que fluem (Pina Bausch e Almodovar). Sou apaixonada por viagens e por relatos delas...
Ah! assim, sim. Belo trabalho!
ResponderExcluir:-)
ResponderExcluirContessa, devo confessar-te que entre o Fogo e a
Pina Bausch (1940 – 2009, R.I.P.) , fico com ela (e tu também...)
:-)
Café Müller, mil novecentos e troca o passo.
com este nick mais próprio desta larga ausência de escrita (embora menos de leitura, mas pouco!)
ResponderExcluirpost isto - que é um blog - e chamado à colação, o meu preito à (excelente) autora & (razoável) fotógrafa
saudades também de cabo verde e sobretudo da suas pessoas fantásticas
obg por me trazerem de volta
vou tentar ficar mais tempo, pelo menos a partir de 3ª...
Aditamento, falaste de tantas coisas...
ResponderExcluir"Hable con ella" (2002).
A Pina Bausch também entra nesse flix...
Na banda sonora há nomeadamente estas canções:
# "Por toda a minha vida"
Escrita por Tom Jobim e Vinicius de Moraes
Aqui fica a versão italiana dessa música, cantada pela Vanoni e dita pelo Vinicius, letra do Vinicius, música do Toquinho, tradução para italiano do Sergio Bardotti, durante o exílio d'eles, forçado pela ditadura fascista do general Geisel...
# "Raquel"
de Rufino Almeida com Africa Nostra
do album "Tôp d'Coroa", do Bau
# "Cucurrucucú Paloma"
de Tomás Méndez
cantada por Caetano Veloso
# "O let me weep, for ever weep"
de "The Fairy Queen"
por Henry Purcell
(arranjos de Benjamin Britten e Imogen Holst)
# "Hain't It Funny"
(é a k.d. lang a cantar...)
# "Study Waltz"
(Graham Dickson Place)
Piano pelo Víctor Matos
Peço desculpa Alvega, mas há comparação???
ResponderExcluir“…entre o Fogo e a Pina Bausch…”???
Na sua grandeza de coreógrafa e bailarina não terá, também ela, sentido necessidade de revelar a ilha do Fogo? Quererá dizer algo?
Parabéns Contessa e a sensação de coração cheio ao sair da ilha dificilmente irá desaparecer...
Lu, quem pede desculpa sou eu, tens toda a razão, o que é que me deu para comparar ?
ResponderExcluir:-(
A propósito de nada, C., propostinha de banda sonora p'ra esse teu post, vai ser o que eu tenciono ouvir esta noite:
ResponderExcluirSongs We Know - Fred Hersch and Bill Frisell
Mobius Music, 1998.
Pianist Hersch and six-stringer Frisell have created intimate music here.
Picture a scene: the two players stroll down the avenue in lively conversation, sometimes talking at the same time, each with his own flurry of commentary on a topic of truly mutual understanding.
Now press play on your CD player and listen to the soundtrack.
"Someday My Prince" opens with an exciting air of suspense as Frisell holds a syncopated drone line over Hersch's gentle chords.
It glows with melodicism.
Full of fun, the duo captures the composer's whimsical spirit well in their treatment of "Blue Monk."
Here and elsewhere, Frisell's 2-string ideas are colorful and pungent.
Add their take on "Yesterdays" to the ever-growing list of genius interpretations of this Kern tune.
While the Sun Ra and Art Tatum versions still shine just as brightly, this one romps like a juicy storybook.
A collection of standards full of spontaneity, agility and friendship.
Tracklist:
01. It Might As Well Be Spring
02. There Is No Greater Love
03. Someday My Prince Will Come
04. Softly As In A Morning Sunrise
05. Blue Monk
06. My One And Only Love
07. My Little Suede Shoes
08. Yesterdays
09. I Got Rhythm
10. Wave
11. What Is This Thing Called Love
Estive à conversa com um casal de amigas minhas, que foram passar 8 (assim como oito... ou terão sido dez ??) diitas a C.V., assim como tu.
ResponderExcluirMas elas ficaram na ilha da BoaVista, num hotel de espanhóis, impecável, sentavam-se na esplanada e depois tudo acontecia em volta, e os empregados eram bonitinhos e tudo (elas dixit, eu não estava lá para 'avaliar').
Os võos inter-ilhas custaram-lhes o mesmo (por uma viagem de ida e volta...) que me custaram a mim 3 meses a borregar no Brasil.
Contessa essa coisa de C.V. sai muuuito mais cara que uma semana nas Seychelles... e com um bocado de sorte também há praias, e já não tens que aturar lá (nas ditas Seychelles) o meu semi-pseudo vizinho qq. coisa Mário Colares, nem a desgraçada da tartaruga em cima da qual ele se... (cala-te boca)
:-))
Completamente elucidada!!
ResponderExcluirThanks! ; )
Ia-me esquecendo de elogiar: Contessa, estás uma senhora fotógrafa !
ResponderExcluir:-))
Noutra nota:
MTH, dás-me licencinha para discordar de ti ?
Os "tiques e maneirismos" são parte integrante dos factores distintivos que nos individualizam, senão és apenas mais um rosto na multidão.
Mas realmente não sei se é esse o teu "objectivo de vida"...
Podes é gostar ou não deles (dos tais "tiques e maneirismos") , contudo isso já são outros quinhentos... (outra conversa)
Got me ?