quarta-feira, 10 de março de 2010

Livros e Guilhotina - Vasco Graça Moura

Sou um dos autores cujos livros foram recentemente mandados destruir pela administração de uma empresa que tinha adquirido a editora que os publicara. Protestei oportunamente, ainda sem saber do caso quanto a todos os meus títulos abrangidos pela medida, e devo dizer que me foram apresentadas desculpas e uma proposta de compensação, com toda a cortesia. Considero-me moralmente credor da entidade responsável, mas entendo não ter nada a exigir-lhe materialmente. Esta é, claro está, uma posição estritamente pessoal e que não vincula mais ninguém.

Feita esta declaração de interesses, penso que valerá a pena, independentemente da evolução do caso quanto aos outros lesados, reflectir sobre futuras ocorrências de idêntico sinal. Isto por se ter dito, no ensejo da discussão do assunto, que é prática corrente das editoras procederem à destruição dos livros que têm em armazém e se tornaram invendáveis.

Diga-se que, no caso em apreço, é exactamente essa "invendabilidade" que falta demonstrar quanto a muitos dos títulos (e não penso nos meus que, todavia, tenho a imodéstia de não considerar fossem assim tão maus e invendáveis como isso…) abrangidos pela estúpida medida de extermínio decretada. As dificuldades de venda, muitas vezes, derivam de uma distribuição mais do que eficiente, de um descaso e falta de formação chocantes do pessoal de muitas livrarias e de uma mentalidade que se instalou no comércio do livro, sempre em busca da novidade, o que faz com que, decorridas duas ou três semanas sobre a sua colocação em determinado posto de venda, o livro seja logo devolvido ao editor…

Estou em crer que a destruição dos livros em questão foi um gesto inconsiderado de gente recém- -chegada ao mundo da edição e que não percebia nada do assunto. Achou que precisava de libertar espaço em armazém e zás!, não só não deu uma palavra aos autores e demais interessados como nem mesmo lhe ocorreu que os livros, quase todos eles de excelente qualidade gráfica e conteúdo a corresponder, poderiam com vantagem ser distribuídos no País, ou nos países de língua portuguesa, a título gratuito, em escolas, hospitais, prisões, lares da terceira idade, bibliotecas populares, clubes desportivos, etc., etc.

Seja como for, é intolerável que as coisas se passem nestes termos. Por um lado, é uma brutalidade que os editores tenham de pagar IVA sobre as ofertas de livros que fazem, por outro, será normalmente um crime cultural que possam destruí-los, assim, sem mais nem para quê, sempre que lhes der na veneta.

Quando o livro representa valores civilizacionais muito elevados e, como instrumento de cultura, satisfaz importantes necessidades individuais e colectivas, não deve ficar a bel-prazer de qualquer tecnocrata besuntado de ignorância e de solércia, a trabalhar na edição há um quarto de hora e tão preocupado com a respectiva armazenagem como se o produto fosse um lote de caixas de lixívia em pó, tomar a decisão de o destruir. É claro que o raciocínio subjacente pode ser muitas vezes perverso: se o Estado está na disposição de aceitar uma doação, bem manobrado até poderia ser levado a comprar os bens objecto dela… Logo mais vale não lhe oferecer nada!

Valia a pena legislar-se no sentido de que, supondo que, do obrigatório contacto com o autor, nada de positivo decorra, o Estado, através de instâncias idóneas para a apreciação qualitativa e a execução de políticas do livro, deve ser avisado da disponibilidade em que determinado lote de livros se encontra e ter um prazo razoável para lhe determinar um destino, encontrando as soluções de transporte e armazenagem intercalar que se imponham no caso concreto. Não há nisto nenhuma espécie de violência contra a propriedade privada: o livro que vai ser destruído está no caminho de se tornar uma espécie de coisa abandonada, res derelicta, e pode portanto ser apropriado por qualquer um. Quando muito, haveria que equacionar a questão do valor residual da coisa a destruir enquanto susceptível de ser transformada em pasta de papel.

O que não se pode é esperar que a cultura prospere e os editores sejam respeitados com atitudes de um primarismo grotesco como este. Aos autos da fé de sinistra memória inquisitorial não podem suceder, no século XXI, estas peripécias macabras da guilhotina tecnocrática.

Vasco Graça Moura in Diário de Notícias

3 comentários:

  1. Não quero saber de razões de espaço ou de IVA.

    Destruir livros é uma merda nazi !

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  2. Apoiado James !
    Esta história da destruição dos livros mostra em que País vivemos.
    O Estado mais uma vez representa e bem, a atitude da ignorância militante apenas em busca de receitas e esquecendo que a cultura sob a forma de livros bem poderia ser oferecida por esse mundo onde a lingua portuguesa ainda é tida e apreciada, não sabemos até quando !
    VGM protesta e deve ser aplaudido.
    Merece o apoio de todos os portugueses que ainda prezam a sua lingua e os restos de cultura que subsistem !!!

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  3. Aplaudidíssimo! Nem merece a pena repetir o q está tão seriamente e sentidamente escrito por VGM! Quanto à "incultura" ou analfabetismo militante de muito empregadinho de livraria, posso comprovar! Alguns nem para vender na Zara têm preparação. Para quando a certificação de alguns profissionais?

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