segunda-feira, 12 de abril de 2010

LXVI - Cai o pano...

Depois de uma espera que me pareceu demasiado longa foi a sempre, ou quase sempre, objectiva Cristina que me respondeu.
" Nem tesouros, nem mapas secretos..."
Miguel Gavião pegou-lhe na palavra"...nem mapas secretos, nem esconderijos de armamento que foi uma hipótese que chegámos a equacionar..."

A continuarem com tantas evasivas nunca mais íamos chegar a conclusão nenhuma. Via-se que aqueles dois estavam mais habituados a recolher informação do que a transmiti-la.
Mas, na realidade, talves estivesse a ser um pouco injusto porque nesse momento já a 'Foxy' sacava do seu saco a tiracolo um grosso livro de capa de carneira preta e o colocava sobre o tampo da mesa da Flor do Bairro que nunca servira de base a algo tão valioso.
" O 'tesouro' é um diário do Hemingway em que este, sem tabus nem segredos escondidos, narra toda a sua vida sentimental na vertente menos conhecida - a homossexual"

Ao ver a forma ansiosa como eu olhava para aquele volume quase quadrado com uma lombada de uns três centímetros, Cristina passou-mo para a mão.
A primeira coisa que me saltou à vista foi o estado impecável em que ele se encontrava. A caixa de ferro onde fora guardado e o seu envolvimento pela base da estátua protegera-o da passagem dos tempos e apresentava o mesmo aspecto do dia em que fora guardado ( pelo escritor? pelo amante?).
A segunda, foi a aparente autenticidade do diário pois a elegante e cursiva caligrafia do romancista que eu conhecia tão bem era óbvia e até a tonalidade arroxeada da tinta usada não deixava margens para dúvidas.

Comecei a ler um pouco na diagonal e logo fui apanhado pela escrita apaixonante e apaixonada que, para além da qualidade técnica sempre presente na obra do escritor, transmitia desta vez uma carga emocional pouco usual nos seus trabalhos.
Apercebi-me que para além de várias páginas dedicadas à adolescência, às primeiras dúvidas que lhe tinham surgido e que tentara disfarçar ou, melhor dizendo, afuguentar com uma intensa actividade física, o capítulo da mudança e da descoberta era a viagem de barco até Cuba na companhia do seu amigo e primeiro amante.
Mas mais de três quartos do livro eram dedicados ao seu romance com o pintor e poeta português e aos muitos momentos passados na Quinta do Côto...

Estava de tal maneira impregnado na leitura que nem me apercebi que os minutos já ultrapassavam a meia hora e foi a voz do Miguel que me fez sair do sortilégio da leitura.
" Nuno, a Cristina e eu temos que desaparecer da circulação. Neste momento, o Comendador pensa que é o Coronel quem está na posse do tesouro e este pensa exactamente o contrário. Dado o facto de defenderem linhas muito opostas dificilmente falarão um com o outro sobre este assunto mas quando o Sousa comunicar com a Mercedes, e já não deve faltar muito, tê-los-emos à perna, pois pensam que o que nós temos em mãos poder-lhes-á abrir as portas ao poder que os dois tanto anseiam..."
Como num duo bem ensaiado, Cristina prosseguiu " ...é evidente que este diário para qualquer editora americana ou para um grande coleccionador pode valer milhões...mas se o seu autor teve tanto cuidado em preservar a sua existência pensamos que não temos o direito de divulgar algo que ele escondeu durante toda a sua vida..."

O que estariam aqueles dois a pensar fazer? Atirar o diário ao rio? Queimá-lo? Fazê-lo explodir?
Mais uma vez...pela última vez, Cristina'Foxy Lady' pareceu adivinhar-me os pensamentos.
" É claro que não temos igualmente o direito de fazer desaparecer uma peça que é uma obra prima da escrita confessional, por isso..." uma breve pausa de segundos"...resolvemos entregar o diário a alguém que o vai preservar, guardar e apreciar condignamente.
A si, Nuno..."

Por momentos fiquei sem resposta e com os olhos toldados por uma lágrimas inoportunas que me faziam ver uma imagem desfocada dos meus dois companheiros de aventura a levantarem-se e, de volta ao pragmatismo de que faziam gala, a despedirem-se lacónicos "Bem, temos que ir. Já estamos escalados para uma nova missão, algures na América do Sul. Mas iremos dando notícias.,.."
As últimas palvras de que me lembro foram da 'Foxy'.
" Gostei muito de trabalhar consigo, Nuno" e para não deixar nenhum sentimentalismo no ar " a despesa fica por sua conta..."

Não sei por quanto tempo fiquei de olhos fixos na capa de carneira preta...
Foi com sobressalto que ouvi a frase da Rosinha enquanto me colocava debaixo do nariz um pequeno pires de inox com a conta" Examine bem a factura...pode ter algum erro!"

Olhei o total com desinteresse. Preparava-me para deixar uma nota que o cobrisse com uma margem generosa, quando algo no tom da voz utilizada pela esbelta jovem que permanecia parada à minha frente me vez examinar o verso da factura.
Numa letra redonda, tipicamente feminica lá estava a frase que provava que há dias na vida das pessoas que são mesmo de sorte - " Vou ter consigo a sua casa daqui a meia hora. Beijos R."

Chegado a casa, dei comida ao Leónidas, fiz a cama de lavado, coloquei o Hotel California como música de fundo e aguardei.

Minutos depois abri abri a porta a uma atraente mulher que, sem falsos pudores ou moralismos hipócritas, me envolveu num abraço apertado que culminou num beijo doce e sem pressas...

Nesse momento tocou o telefone.
Contrariado, fui atender na extensão da cozinha. A voz do outro lado era quente, sussurrada e transmitia uma angústia apavorada
" Nuno, daqui é a B. Ele acabou de sair para aí e diz que é hoje que dá cabo de si..."
...Quem seria afinal esta B?

Da direcção do meu quarto ouci a voz da Rosinha " Nuno, ainda vai demorar muito?"
Desliguei o telefone, coloquei-o fora do descanso e avancei pelo corredor...

The End (?)

Verdizela, Abril de 2010
Dedicado à D. e ao M. e à sua cumplicidade evidente

5 comentários:

  1. Ao 66ºepisódio! parabéns!

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  2. Yep... Mizz Rosinha leva o 'prémio', finalmente...

    -----------------------------------------------------------

    P.S.
    (no sentido de post-scriptum, não da outra coisa...)



    Pah... posso propôr uma alternativa a essa músiquinha e a esse hotel foleiríssimo ?

    :-)

    Aqui a tens , os mesmos gajús, com uns acrescentos...

    (Mas é claro que a 'estória' --- e 'por e tanto' a música-de-fundo são tuas, estou só a "puxar pela tua perna"...)

    ;-))

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  3. Belo cair de pano (?)!

    Como música de fundo, eu proporia "Smoke gets in your eyes", pelo Brian Ferry.
    Espero que a D. e o M. apreciem...

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  4. Ah, e este meu post é só p'ra te "chatear", oh mocinha...

    Como sabes eu sou um incondicional desse narciso (a última vex que o vi foi cá, no estádio do Belenenses, com uma vista fabulosa para o Tejo -- estávamos no 'topo norte' ou lá como aquilo se chama --- e os gajús a entrarem de Mercedes branco pela pista de atletismo até ao palco, e o gajú/narciso de smoking branco com uma lista vermelha calças abaixo, de que ele se foi desfazendo ao longo do concerto, e os King Crimson do Fripp da fase "Thela Hun Ginjeet" a abrirem o espectáculo...

    Depois da perfeição, soube-me meio a impossível voltar a ver concertos destes ao vivo e a côres.

    Nunca gostei muito da versão dele dessa canção, sorry to say.

    Portanto aqui fica a cover pela falecida alma danada dos Grateful Dead , muito mais interessante, mas é apenas a minha opinião... (para mim a versão definitiva disso é a dos Platters .

    Gostos são gostos, claro, me thinks que o melhor do Ferry na pele de crooner está aqui .

    :-)

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  5. Smoke, Harvey Keitel, outra música...

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