quarta-feira, 11 de novembro de 2009

IIIIIIII RECEITUÁRIO DOMÉSTICO IIIIIIIIIIIIIIIIIIIIII Como dar mais vida ao "dinheiro vivo" e dele tirar proveito quando morrer

Um conselho de sociólogos da Universidade de Berkeley, nos EUA, perscrutou os comportamentos humanos durante a próxima década e concluiu que nos países mais avançados irão ocorrer alterações de práticas seculares, por vezes milenares como é o caso da utilização do chamado dinheiro vivo. A médio prazo, segundo os doutos prescientes, extinguir-se-ão vocábulos como "porta-moedas" e "carteira", substituídos por um anel que nas pequenas despesas quotidianas fará as vezes do corrente cartão electrónico. Ou seja, depois de bebermos um cafezinho ao balcão teremos apenas de aproximar o nosso anel do "leitor óptico" que o funcionário do estabelecimento nos apresentará (vai ser complicado para quem, como eu, nunca suportou anéis de qualquer espécie!).
Preparemo-nos pois para a extinção da "bagalhoça", do "carcanhol", do "pilim" – alguns dos mil e um termos que entre nós designam o dinheiro sólido, palpável. O óbito do dinheiro vivo conheceria a certificação irrevogável pelos meados da próxima década. Restam, portanto, poucos anos. Num momento em que ninguém sabe ao certo para que lado vai cair o mundo, conforta a infabilidade deste género de profecias.
Mas um pormenor escapou aos sábios de Berkeley. Ei-lo: um país europeu, extremo na geografia e nas tradições, não irá aceitar a morte do dinheiro vivo. Nem pensar. Porque existe nesse país uma parcela populacional, tradicionalmente inquantificável mas de certeza poderosa, tão afeiçoada ao dinheiro vivo que amiúde os noticiários abrem com referências a malas cheias do dito. Vivíssimo.
Ainda anteontem a população desse país acordou com a notícia de uma transacção operada por meio de um saco presumivelmente recheado de dinheiro vivo. Saco de papel, importa realçar. O acontecimento é banal, questiona-se apenas a preferência por sacos de papel em alternativa aos de plástico, vulgo de supermercado. Quem de hábito recorre a este Receituário Doméstico para obter conselhos sobre questões da vida prática já conhecerá a resposta – espontânea, categórica –, a qual vai, como não podia deixar de ser, no sentido de se realizarem as transacções de dinheiro vivo sempre em sacos de papel ou em malas desprovidas de componentes metálicos, imputrescíveis. Aqui se advogam, desde o primeiro dia, os comportamentos cívicos inspirados numa verdadeira e sã consciência ecológica.
Sem intuitos publicitários, reproduz-se um adequado modelo de saco de papel: o discreto Kraft, de preferência reciclado. Disponível em vários tamanhos em função da importância das transacções.


Suprema ironia, de facto. Anuncia-se a morte do dinheiro vivo quando nesse país ele está mais vivo que nunca, embora os clientes de certos bancos privados bradem que está mais morto que vivo.
Muito se fala ao telefone sobre estes assuntos. E à noite, no conchego de milhões de lares, os habitantes ligam os televisores para escutar uma selecção criteriosa e curiosa das conversas telefónicas. Conversas de teor deseducativo, quantas vezes escandaloso. Por exemplo, na frase:

«V.Exa. não levará a mal que lhe deixe aqui este envelope, creia que é tão-só uma forma muito sincera de lhe manifestar a minha grande admiração.»

Inadmissível, realmente. Envelope é um galicismo que deverá evitar-se em absoluto. A palavra correcta será sobrescrito. Ou sobrescritozinho em vez do inapropriado envelopezinho.

No país em apreço, o dinheiro vivo constitui um legado civilizacional dos costumes, expressão que alguns maledicentes substituem por manigâncias. Tornou-se o parceiro estratégico dos que labutam esforçadamente para vencer na vida, não olhando a meios, porque quem olha não lucra.

Urge portanto desenvolver acções tendentes à sobrevivência do dinheiro vivo. Essencial será dificultar e desmotivar quanto possível o uso do chamado dinheiro eléctrónico, essa invenção demoníaca. Até espanta que passados dois anos continue encalhada a directiva 2007/64 permitindo aos comerciantes passarem a cobrar uma taxa aos consumidores pelas compras feitas com cartão de débito ou de crédito. Frustrou-se há dias uma iniciativa no sentido de aplicar essa taxa, que estimularia uma parte da população a abastecer-se de dinheiro vivo, directamente nos bancos, em quantidade suficiente para as despesas de todo um mês. A classe da esforçada gente que labuta para vencer na vida (na base do dinheiro vivo) sonha com o dia em que as lojas e os supermercados se povoem de clientes com saquitéis de moedas dependurados à cintura, como na antiga Fenícia.
Esta e outras acções de revitalização do dinheiro vivo tornaria obsoleta a Divisão de Investigação de Crimes Económicos da Polícia Judiciária, cujo pessoal poderia ser transferido para o magnífico Museu e Arquivos Históricos da instituição, ali a dois passos de Loures, cuja directora, a minha prezada amiga Drª Leonor Sá, bem necessitada anda de reforços humanos.

Todavia, não iludamos o óbvio. Um dia, os labutadores do dinheiro vivo terão mesmo de ir ao velório do seu querido parceiro estratégico. Os sábios de Berkeley gritarão vitória. E, ante o dinheiro morto, as amoráveis notas europeias desvanecendo-se em lembranças suspirosas, que acontecerá no tal país?
Quem irá sobreviver?
Os leitores recorrentes neste Leal Conselheiro dos Cidadãos Baralhados sabem também que nele se valorizam os princípios da isenção, do pluralismo e se repudiam as divisões classistas. Não deverão por isso considerar-se excluídos de bom aconselhamento os ratões da alta finança. Como é regra desde o princípio do mundo, tudo tem o seu reverso. O azar de uns é a sorte de outros (azar dos azarentos: são quase sempre os mesmos). Ora, essa esperta gente da banca ignora, mas ficará a saber a partir deste momento, que poderá encarar como uma excelente oportunidade de negócio a morte do dinheiro vivo. Assim, prescrevemos, para começar, a instalação em áreas contíguas aos seus bancos de cemitérios de dinheiro morto.
Depois informar-se-á por carta em sobrescrito (evitar envelope) tarjado a negro:

«Prezado Cliente,
A Administração deste Banco cumpre o doloroso dever de informar que morreu o dinheiro que V.Exa. havia confiado a esta instituição. Condoídos e reconhecendo a eterna saudade que o defunto deixa a V.Exa., permitimo-nos sugerir a opção pelos nossos serviços lutuosos, de acordo com o preçário em anexo (valores com IVA incluído). Chamamos a atenção para a actual oferta promocional, possibilitando-lhe, com encargos surpreendentemente baixos, inscrever o seu nome na pedra tumular.»




Pedro Foyos
Jornalista



3 comentários:

  1. O PF anda muito mais leve e solto e os textos reflectem isso...
    Muito oportuno e "engraçado" !!!!

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  2. Que o humor nunca te falte !
    (que frase mais pirosa ... mas foi o que saíu !!!!!)

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  3. Boa bola, P.F. !!

    No entretanto é preciso não esquecer que Berkeley (S.Francisco) é a univ. com maior percentagem de janadinhos e avariados de todas as as Américas, é um gosto que se adquire, mas raramente de se tomar a sério...

    :-)

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