domingo, 8 de novembro de 2009

MUDE de ideias: converta-se ao caos


Desde a primeira linha deste desabafo, será preciso levar em conta que eu não me informei acerca do historial do objecto em causa – o novo Museu de Design e de Moda - MUDE, em plena baixa de Lisboa – até ao momento em terminei de escrevê-lo.

Fi-lo, propositadamente, para que o relato das minhas sensações e comentários possa ser livre do contágio próprio das coisas que cheiram a polémica e à inevitável polarização de opiniões.

Lá fui, Rua Augusta acima, buscando a única referência espacial que tinha. Ainda no Terreiro do Paço, naquele espaço tão aberto ao rio e tão fechado de ideias (credo! outra polémica… fujamos daqui!), pus-me a pensar onde raio se enfiaria um museu em plena baixa pombalina. Conheço bem a arquitectura daqueles prédios, que teimam pela seriação da sua construção – vãos idênticos e hierarquizados segundo a primazia das ruas, pés-direitos relativamente baixos (se comparados com o que era habitual nas casas civis do século XVIII), normas de conservação extremamente rígidas que raramente permitem alterações significativas por parte do município.
Não tive que esperar muito para esbarrar na resposta: logo ao segundo quarteirão, lá está ele, nas antigas instalações da agência da Caixa Geral de Depósitos, denunciado por um imenso avental de tela que forra integralmente a fachada do prédio, quase ao jeito de Christo and Jeanne-Claude. Logo ali adiantei a minha primeira dedução que veio a ser certeira – o interior do edifício já havia sido alvo de obras, durante as menos informadas e altamente destrutivas décadas de 60 e 70 do século passado, no que toca ao património arquitectónico e arqueológico.

A falta de regras camarárias sérias, ateadas por uma fraca consciência pública da importância do património histórico, permitiu uma delapidação irreversível na herança cultural que se deixaria para as futuras gerações. Só assim se compreendem - sem contudo se justificarem - as enormes alterações que alguns destes edifícios seculares receberam, a começar pelos enormes vãos das montras ao nível do rés-do-chão e por vezes também do primeiro andar, na maior parte das lojas desta artéria e que tão simplesmente destruíram por completo o ritmo da fenestração e a pureza da leitura do alçado da rua. Acerca deste assunto, hei-de pronunciar-me mais profundamente mas por ora gostaria de adiantar que não sou defensora da imutabilidade dos contextos da arquitectura mas muito mais pela adequação honesta e sensata do universo pré-existente ao progresso das actividades humanas.
No interior, duas agradáveis surpresas: está fresquinho e é grátis. O que dá sempre jeito em Agosto, a primeira, e em qualquer mês do ano, a segunda.
Num vislumbre, deu para perceber que o local vai gerar polémica. Ali, como no Gughenheim, a colecção é o que menos importa. Mas por motivos completamente diversos. Não é obra de um arquitecto de renome – pelo menos, desde o Eugénio dos Santos, deve ter havido ali intervenções de mais uns cinco ou seis tipos - não necessariamente arquitectos. E estão lá todas à vista, as intervenções. Ah pois! Do pombalino às sancas de tectos dos anos 50, dos painéis de mármore verde completamente sixtie’s aos balcões torneados dos 70’s, tudo ainda resiste.
E convivem de forma… Ah-ah! Pensava que ia dizer “harmoniosa”? Não, não. Completamente invulgar, desarrumada, suja mesmo. Está lá tudo: entulho nos estafes dos tectos, restos de cofragens de lajes e pilares, tijolos por rebocar, até arcaicas marcações de pontos de luz com os condizentes erros ortográficos dos serventes de electricista.
No meio daquele cenário de guerra, onde quase tudo é cinzento e anárquico, naturalmente sobressaem as peças da colecção em si. Simplesmente pousadas sobre paletes de madeira pintadas de branco, suavemente iluminadas. E vivem, claro. Tirando um conjunto de gavetas desconcertadamente amontoadas, pouco mais me tocou, mas isso é outro assunto até porque estive muito mais atenta aos comentários do público.

“Isto deve ser provisório, não?” e “Que pena…Tudo desfeito. Não poderiam ter dado uma pintura?” não foram de todo os comentários que ouvi, embora o meu preconceito esperasse isso dos três velhotes minhotos que gabavam a juventude ao Freitas do Amaral à data do cartaz da AD.
Penso que a cidadania está a tomar contornos interessantes em todas as camadas da sociedade, sendo um deles a consciência de que a arquitectura tem razões para existir como forma de expressão da cultura actual de um povo. O CCB, foi o primeiro passo nesse sentido, acho. Os Jerónimos não ficaram zangados, aos lisboetas passou-lhes a birra e os turistas nem deram por nada. A Expo ‘98 veio cimentar essa consciência. E, com os anos, as intervenções arquitectónicas na província, por meio de centros culturais e fluviários, vieram familiarizar as populações com novos formatos, materiais e soluções arquitectónicas diferentes das que estiveram habituadas pela dieta letárgica que o Estado Novo impôs, ao reforçar os aspectos seculares da arquitectura e esquecendo o seu elemento fundamental – a contemporaneidade.
E o Gughenheim é contemporaneidade. Curiosamente, o MUDE não. O MUDE é uma memória de arquitecturas mortas. De facto, aquele espaço está moribundo. E contudo move-se. Desde o pombalino ao momento actual, apresenta um pouco de tudo, o que produz um efeito tão interessante quanto inovador e que é a total ausência de uma baliza temporal que o possa claramente identificar como protótipo da arquitectura de uma era – mal de que padece a grande maioria da arquitectura pós-moderna. Veja-se o Aldo Rossi e aquilo tresanda a anos 80. O próprio Frank O. Gehry é bastante datável. O MUDE, por seu lado, sendo inqualificável quanto ao estilo, indescritível quanto à forma e incompreensível quanto ao conceito, torna-se, por isso mesmo, muito mais intemporal e, muito possivelmente, poderá perdurar no tempo sem grande mácula - posso arriscar - quase sem risco de apodrecer fora de moda. É tão improvável achar-lhe um estilo como um autor que o tenha assinado.

Este aspecto peculiar da casca do museu traz imensas mais-valias à exposição em si, como é fácil calcular. Vive no meio do caos apático, sobressai pela cor e aprumo, sem concorrência à altura, e assim obtém um protagonismo que nem o Richard Serra consegue com esculturas do tamanho de campos de voleyball dentro de Bilbao. E era isso que se queria, ou não era?

Moira de Trabalho

4 comentários:

  1. Temos aqui matéria para acesas discussões à volta da mesa de um Café ou de um acolhedor restaurante. Não aquele do "seu" CCB !A subjectividade que se sobrepõe a qualquer periodo e obra de Arquitectura, leva sempre para um afastamente da análise distanciada e fria quer de opções estéticas quer da vertente politica que inquina muitas das nossas atitudes e raciocinios.
    De facto a Baixa Pombalina foi objecto de muitos actos "criminosos", igualmente a "Alta Pombalina" também o foi e agora recentemente.
    Das suas palavras, Moira de Trabalho que muito apreciei, não duvide,fica-me a sensação de que talvez não se afasta para fora do cenário terrestre e olha para o nosso mundo como um panorama histórico de multiplas épocas de estilos e gostos, todos eles dignos e que permitem chegar ao ponto exacto que bem nos descreve nesta sua visita.
    Que despertou a minha permanente curiosidade.
    Obrigado.

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  2. Excelente Moira! Análise rigorosa, bem argumentada e elaborada. O MUDE arrisca-se a ser um portuguesíssimo provisório definitivo com origem num apressado costa que quis mostrar obra a poucos meses de mais uma eleição.

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  3. Confesso que não percebi muito bem o ponto de vista do ZM, mas à Moira parabéns pela sua análise que, copiando e reforçando a Quimera, é rigorosa, bem argumentada e elaborada.

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  4. Interessantíssimo ponto de vista. Como sempre, rico de imagens, a que o título do "post" não é alheio!

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