terça-feira, 26 de maio de 2009

Elogio ao Amor - Miguel Esteves Cardoso

Quero fazer o elogio do amor puro.
Parece-me que já ninguém se apaixona de verdade.
Já ninguém quer viver um amor impossível.
Já ninguém aceita amar sem uma razão.
Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática.
Porque dá jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado.
Porque se dão bem e não se chateiam muito.
Porque faz sentido. Porque é mais barato, por causa da casa.
Por causa da cama.
Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria.

Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em "diálogo".
O amor passou a ser passível de ser combinado.
Os amantes tornaram-se sócios.
Reunem-se, discutem problemas, tomam decisões.
O amor transformou-se numa variante psico-sócio-bio-ecológica de camaradagem.
A paixão, que devia ser desmedida, é na medida do possível.
O amor tornou-se uma questão prática.
O resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam "praticamente" apaixonadas.

Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há!
Estou farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de serviço.
Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como os de hoje.
Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas de cantina, malta do "Tá! Tudo bem, tudo bem", tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, banalidades, borra-botas, matadores do romance, romanticidas.

Já ninguém se apaixona?
Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo?
O amor é uma coisa, a vida é outra.
O amor não é para ser uma ajudinha.
Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida, o nosso "dá lá um jeitinho sentimental".
Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso.
Odeio os novos casalinhos.
Para onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice, facada, abraços, flores.
O amor fechou a loja.
Foi trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade.
Amor é amor. É essa beleza. É esse perigo.
O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. É uma questão de azar.
O nosso amor não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto.
O amor é uma coisa, a vida é outra.
A vida às vezes mata o amor.
A "vidinha" é uma convivência assassina.
O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino.
O amor puro é uma condição.
Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima.
O amor não se percebe. Não dá para perceber.
O amor é um estado de quem se sente.
O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar.
A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende.
O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária.
A ilusão é bonita, não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser.
O amor é uma coisa, a vida é outra.
A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida.
A vida que se lixe.

Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre.
Ama-se alguém.
Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente.
O coração guarda o que se nos escapa das mãos.
E durante o dia e durante a vida, quando não esta lá quem se ama, não é ela que nos acompanha - é o nosso amor, o amor que se lhe tem.
Não é para perceber.
É sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz.
Não se pode ceder. Não se pode resistir.

A vida é uma coisa, o amor é outra.
A vida dura a vida inteira, o amor não.
Só um mundo de amor pode durar a vida inteira.
E valê-la também.

Miguel Esteves Cardoso

5 comentários:

  1. É uma pena que o MEC tenha desperdiçado tanto da sua vida e talento( mas que sei eu disso, talvez tenha apenas seguido a sua opção)em trabalhos dispersos e menores, quando tem uma sensibilidade e um poder de observação quase que únicos.
    Apesar de, apenas, ou talvez por isso mesmo, ser meio português, nunca vi ninguém que retratasse os nossos defeitos, manias e qualidades como ele o faz.
    E depois disserta com a mesma irreverência, lucidez e graça acerca de uma couve galega, dos nomes das nossas terras, dos palavrões ou, como é o caso, do Amor.
    Um Amor com A Grande, como se deve escrever.
    Porque o resto é Amizade Colorida, Matrimónio, Grande F...,Ternura, Muito Afecto e Carinho mas nada da "real thing".

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  2. Até acredito que muitos de nós gostassemos que o Amor fosse isto mas entre a Teoria e a Prática...

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  3. E o que é comanda a nossa vida?
    O modo como praticamos as nossas teorias ou o que teorizamos acerca das nossas práticas ?

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  4. A melhor definição de Amor, desde Luís Vaz de Camões!
    Com quatro séculos e meio de distância...

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  5. Lia-o aqui há muitos, no Independente, na altura em que era Director um senhor "cujo nome não me apetece pronunciar".

    Sempre pensei que ele tinha tanto de génio como de "puto parvo". (O MEC que me desculpe, a expressão não tem nada de ofensivo,é a que me ocorre e que me faz sentido no quero dizer.)

    Este texto está no seu lado genial. Bonito. Sentido. Simbólico.

    Quando acabei de ler, de lágrimas nos olhos, apeteceu-me guerrear com alguém, só porque sim. Romper com as questões práticas da vida. Aproveitar um bocadinho do inferno aberto. Valer a vida.

    E subscrevo a interrogação. Afinal, o que comanda a nossa vida?

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