segunda-feira, 18 de maio de 2009

Wrong Number

Todas as manhãs fazia a marginal até ao Guincho, ora de bicicleta, ora de carro, conforme ditava o barómetro.
Gostava do ar matinal, das pingas de mar penetrando na pele enrugada, deixando um rasto de salitre nas lentes escuras dos óculos.
Foi por isso que optara por se mudar para perto da costa e a estival Cascais afigurou-se-lhe a mais óbvia das opções.
Estava na casa dos cinquenta e habituara-se a viver sozinho.
Tinha filhos, já crescidos, do seu único casamento, mas viviam em cidades satélites com vidas preenchidas em deslocações automóveis.
Os encontros familiares ocorriam à razão do calendário litúrgico e de alguns aniversários, cada vez mais raros.
Pelas suas contas, o neto mais velho, há oito anos que tem quatro de idade, tal a ausência de comemorações do evento.
A mulher morrera há já muitos anos, doente.
Foi um episódio que mudou completamente a sua postura perante a vida.
Era-lhe muito dedicado, um primeiro amor que julgara ser o único.
A sua partida deixou-o, assim, numa profunda solidão, que tinha tanto de incontornável como de resignação.
E assim, entre o dinheiro da reforma antecipada por sucessivas quebras de saúde e umas heranças de tios abastados, pôde dedicar-se ao seu passatempo por excelência: cultivar a solidão.
Era exímio nisso. O feitio esquivo e a timidez inata forneciam-lhe as ferramentas.
Recusava visitas de parentes, não devolvia os telefonemas aos filhos.
As idas ao café não eram sequer pontuadas com um ‘bom dia’ de cortesia, sem que daí, no entanto, transparecesse qualquer sinal de má criação.
Simplesmente, isolara-se do mundo na forma comunicativa e os outros pareciam, de algum modo, entender essa resolução.

E nesta existência programada ia vivendo quando, numa manhã, pareceu-lhe ter visto um anjo no Guincho.
Iam ambos de bicicleta e ao cruzarem-se na ciclovia, ela deu-lhe um sorriso de cantinho arrebitado no lábio.
Ele confundiu esse gesto com um trejeito de esforço e atrapalhou-se na devolução da cortesia.
Foi a primeira vez.
A partir desse dia, sempre à mesma hora, lá estava ele, para trás e para a frente, ora de bicicleta, ora de carro, à procura daquela silhueta.
O prémio por vezes aparecia.
Sentia literalmente o coração a saltar-lhe pela boca e ao fim de algumas semanas, conseguiu até murmurar um bom dia, que ela, naturalmente, não conseguiu ouvir.
Começou então a preocupar-se mais com a sua aparência.
Comprou roupa nova, foi ao cabeleireiro, mudou de aros.
De manhã, antes da corrida, puxava a barriga para o peito, na esperança que aí permanecesse. Mesmo assim, continuava com bom ar e os anos até o tinham favorecido; o castanho sem graça passou a grisalho e os caracóis irreverentes da juventude passaram a suaves ondulações que condiziam bem com o bronzeado do mar.

Comprou até um telemóvel.
Tinha esperança de conseguir o seu número de telefone, já que um frente-a-frente lhe parecia demasiado ambicioso.
Começou a cumprimentar o homem do café para que lhe pudesse perguntar se a conhecia e assim obter mais informações a seu respeito.
Chegou a ponderar segui-la mas morria de pavor ser descoberto e confundido com um perseguidor de maus instintos e rapidamente desistiu da ideia.
A sua obsessão era o contacto telefónico: suficientemente próximo para a conhecer mas à distância da sua timidez.
Tinha tudo ensaiado; ligaria e falaria com voz calma, pausada; apresentar-se-ia e, da melhor forma possível, daria as suas referências para que ela soubesse tratar-se de uma pessoa de bem com intenções a condizer.
Contudo, a oportunidade nunca mais aparecia.
Lá vinha ela, na sua bicicleta, deslizando.
O mesmo trejeito de boca disfarçado de sorriso.
Ele, hesitante, sem conseguir interpelá-la. Dias nisto. Semanas.
Até que um dia, movido pelo desejo avassalador de obter o seu número, encheu-se de coragem e usou a táctica do pequeno incidente provocado.
Assim, com a desculpa de se pôr ao seu dispor, pedir-lhe-ia o número de telefone.
Nunca tinha feito tal coisa mas o desespero levava-o a esse desfecho.
Ajeitou-se no cruzamento dos Oitavos e esperou por ela, no regresso.
Esperou. Impacientou-se. O coração aos saltos.
O número, o número, ia ter o número.
Por fim, lá vem ela, deslizando, como sempre.
Está muito próximo do seu objectivo.
Impetuoso, arranca a toda a força.
As rodas de trás passaram-lhe por cima de um pé e ela caiu, contorcendo-se de dores, numa poça de sangue.
No fulgor da premeditação esqueceu-se de ir de bicicleta e foi de carro contra ela.
Nem se deu conta. Saiu esbaforido do lugar do condutor.
Em ânsias, sem lhe ocorrer que ela estava seriamente ferida, só via o que o cenário imaginado durante semanas lhe tinha fornecido – um pequeno arranhão e o cabelo despenteado.
Ainda arrebatado pela sua doce ilusão do encontro perfeito, ele exige:
“O número! O número! Dê-me o número de telefone!!”
Ela, prostrada, de olhos revirados, balbucia como pode:
“Cento e doze…”


Dear Prudence
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9 comentários:

  1. Mais uma vez a Dear Prudence a dar-nos um momento de boa e interessante escrita.
    E a dizer-nos que quando o objectivo é a conquista de uma fêmea o macho leva tudo à frente...

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  2. Parabéns, o conto é fantástico.

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  3. My dear, Dear Prudence !
    Gostei muito.
    Congratulations!

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  4. Fluente e com bom final. Gostei muito Dear Prudence.

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  5. Dear Prudence, nome incontornável na Antologia de Contistas do Galo.Muito bom.

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  6. Macho com cio, é melhor sair da frente, ou não...

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  7. Dear Prudence...não há dúvida...é mesmo o que eu penso - muita sensibilidade, muito poder de observação, muita facilidade em traduzir emoções e em provocar emoções!
    Go ahead, Dear Prudence, and greet the brand new day!!!

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  8. Ultrapassando alguns feminismos um bocado primários que por aí andam e pese embora ser escrita de "gajas" a Dear Prudence tem graça, leveza e uma subtil ironia (" o mesmo trejeito de boca disfarçado de sorriso") que torna a leitura de qualquer dos seus contos um autêntico prazer.

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  9. O conto é fantástico, como disse a Maria, parabéns. :-)

    Só a 'estival Cascais' é que me ficou ligeiramente "atravessada"...

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