sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Armando Vara na vara criminal - Ricardo Araújo Pereira

Que os índices de desenvolvimento estagnem,
ou até regridam, não me choca nem surpreende.
É habitual.
Mas que as actividades ilícitas andem, elas próprias,
nas ruas da amargura, deixa-me deprimido

O que se oferece a quem já tem tudo?
Um cheque de 10 mil euros é uma boa hipótese.
Há ofertas que sabem sempre bem, e um cheque de 10 mil euros é simultaneamente prático e elegante.
É elegante por ser, no fundo, uma mensagem escrita num tempo em que as pessoas já não escrevem umas às outras, o que é desde logo comovente.
É prático, porque ninguém se queixa de já ter um igual e, na hipótese remota de não gostar, trata-se de um presente que se pode trocar em qualquer altura.
Nomeadamente, por bens no valor de 10 mil euros.

Dito isto, e por muitos méritos que as hipotéticas ofertas de 10 mil euros possam ter, é forçoso assinalar que o caso Face Oculta embaraça, e de que maneira, José Sócrates e o partido socialista.
Ainda há pouco tempo, figuras importantes do PSD foram enredadas num escândalo que envolvia milhões desviados da banca.
Quando militantes destacados do PS aparecem ligados a crimes, o melhor que conseguem é uma suspeita de pagamento ilícito de 10 mil euros, levado a cabo por um sucateiro.
De um lado, o glamour social-democrata da alta finança, das off-shores, dos grandes grupos económicos; do outro, a falta de estilo do ferro-velho e do lixo.
Estamos perante corrupção pelintra, que é um oximoro difícil de compreender: na origem da corrupção costuma estar a ganância.
Aceitar subornos de 10 mil euros ao mais alto nível é como ser depravado a dar beijinhos na testa.

Quando surgiu, o caso Face Oculta foi justamente recebido por todos com algum entusiasmo, pelo contributo que dava para desenjoar os portugueses dos escândalos do Freeport, do BPN, do BPP e dos submarinos, entre outros.
Era um caso cujo processo seria interessante acompanhar, desde o momento inicial da investigação até ao dia em que, vários anos depois, uma prescrição ou um vício de forma acabe por absolver todos os arguidos menos o mais pequenino.
No entanto, quando começaram a ser conhecidos os pormenores, o caso passou de simpático a aflitivo.
Se se confirma que administradores de grandes bancos recebem 10 mil euros em troca de favores, quanto receberá, hoje em dia, um vereador corrupto, um administrativo gatuno, um vulgar funcionário vigarista?

Eu sou do tempo em que fechar ilegalmente uma marquise custava mais do que 10 mil euros só em luvas.
O que está a acontecer ao meu país?
Que os índices de desenvolvimento estagnem, ou até regridam, não me choca nem surpreende.
É habitual.
Mas que as actividades ilícitas andem, elas próprias, nas ruas da amargura, deixa-me deprimido. Falhar onde nunca fomos bons não é novidade; fraquejar onde sempre fomos grandes, mói um bocadinho.

Ricardo Araújo Pereira in Boca do Inferno ( Visão)

5 comentários:

  1. O cúmulo da pelintrice no seu mais cómico expoente.

    Assombrosamente hilariante.
    Hilariantemente assombrosa.
    Eis a realidade da corrupção em Portugal!

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  2. Portugal dos pequeninos, 800 kms por pouco mais de 250 kms de largura, colocaram os portugueses no mundo da pequenez, até na corrupção.
    Rir com isto e tudo o resto, é triste mas pouco mais resta.
    Poucas duvidas restam que em causa anda o financiamento dos partidos.
    E o pior é que o País encolhe os ombros e não reage a tanta porcaria.
    Que vergonha portugueses !

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  3. Cruzando estes dois textos do MST e do RAP chegamos a uma única conclusão - este Armando merecia era ...uma Vara nas costas!!!

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  4. Já não me apetece o humor à volta destes casos. Como sabem o humor é, também, uma forma de nos ajudar a suportar o insuportável.

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  5. Como se pode fazer uma crítica azeda de forma tão doce!!!!
    Só o RAP, na verdade!
    Como já estou estragada, já nem consigo rir-me muito...mas devia!
    Faz bem a tudo!

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