quinta-feira, 5 de novembro de 2009

TAXI - O Pregador

Deveria ter desconfiado de que algo de estranho se passava
quando ao entrar no taxi fui saudado com um sonoro
“ O Senhor dá força ao seu Povo”, mas como queria dar
uma olhadela final ao briefing que tinha preparado e que iria
apresentar dentro de instantes, não liguei.

A viagem era muito curta, entre Campo de Ourique
e a Rua Castilho, dez minutos no máximo.
O tempo à justa para uma revisão geral…
Mas, ainda eu mal tinha iniciado a leitura da primeira página
quando o motorista, todo voltado para trás, me tentou entregar
uns folhetos que, vislumbrei à distância, falavam do Apocalipse,
da Redenção, da Vida Eterna e de outros temas similares,
importantes sem dúvida, mas que,
na altura, não faziam parte das minhas prioridades.

O que nem eu nem o taxista esperávamos era que
o carro da frente tivesse parado o que originou uma travagem
no último segundo, com todos os impropérios inerentes,
da parte de vários outros condutores.
Mas o “meu” taxista pôs a cabeça de fora e gritou
“ O caminho de Deus é perfeito e a palavra do Senhor provada
é o escudo de todos os que nele confiam”
e, já só para mim , piscando o olho” Samuel 22:31”.
E, concluiu, sorrindo beatificamente
” Não temas Abraão, eu sou o teu escudo…Gênesis 15:1”.
A tentativa, de me embrenhar nos meus papéis, não deu resultado
porque ele iniciou uma qualquer história de ter estado
desempregado quase uma ano, de que só fixei a conclusão
“ Da panela a farinha não se acabou e da botija o azeite não faltou…”.
Fiquei à espera da assinatura, e lá veio ela “…Reis 22:31”.
Resignado, olhei a paisagem. Já estavamos na zona das Amoreiras.
Na passagem de peões, um grupo de rapazes efeminados
desfazia-se em risinhos.
Mal sabiam eles que o taxista lhes iria gritar:
“Ouvi a palvra do Senhor, vós poderosos de Sodoma;
dai ouvidos à lei do nosso Deus, ó povo de Gomorra”
e perante o ar espantado dos jovens ” Salmos 33:6”.
Tendo desistido de aprimorar a minha, já próxima, apresentação,
iniciei uma conversa de circunstância acerca do tempo.
O que eu fui fazer.
Eu a falar da chuva, do frio, ou de qualquer outra futilidade
e ele a sacar dos seus salmos, versículos, ou seja lá o que fôr…
“ Pela palavra do Senhor foram feitos os céus
e todo o exército deles pelo espírito da sua boca”
e o inevitável “Salmos 33:6”

Entretanto dei graças ao Senhor, eu um ateu empedernido,
por termos chegado frente ao Edifício Mobil, meu destino final.
Apercebi-me que o condutor demorava na entrega do troco exíguo,
que eu, em qualquer outra ocasião, teria dito que guardasse.
Mas não naquele caso.
Pacientemente, esperei que ele contasse as parcas moedas
e as colocasse na minha mão.
Só então declarei, com solenidade:
“ E o Senhor disse, aos condutores o que é dos condutores
e a mim o que é meu”
Um hiato de dois segundos e concluí “ João 26:4”
E, perante o espanto do pobre homem “…é a minha data de nascimento”.

Travis Bickle

6 comentários:

  1. Ri-me aqui sózinha, feita uma tonta...
    Sensacional!

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  2. Bem, o que me ri... igualmente PG

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  3. Na "mouche"...
    Ainda pensei que o taxista estivesse a fazer-se a uma "gorgeta" para a Igreja Maná!!! ou para o maná da igreja...

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  4. Gostei.
    O final é simplesmente delicioso.
    Não s.endo ateu gostaria de ter ocasião para rematar de forma similar

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  5. Felizes os ricos de espírito...porque será deles o reino da terra.

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  6. A imaginação ao poder!
    E a resposta sempre pronta, na ponta da língua...

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