quarta-feira, 3 de março de 2010

A Escuta do Dia

– Direcção de Informação, muito boa noite.
– Boa noite.
– Em que posso ser-lhe útil, minha senhora?
– O senhor é pessoa... como dizer?... de responsabilidade nessa estação?
– Bem... sou um dos adjuntos do Director.
– Então é assim. Eu quero apresentar uma reclamação.
– Sim? Ah, nesse caso... faça o favor. A senhora quer reclamar sobre quê?
– Sobre as escutas.
– As escutas!? Não percebo...
– Ó senhor, que escutas hão-de ser?
– Estará a referir-se ao nosso espaço de serviço público – "A Escuta do Dia"?
– Que eu saiba é o único que emitem sobre escutas.
– Temos outro, com outro género de escutas, mas está ainda por estrear. Se a senhora estiver atenta à nossa programação irá...
– É precisamente sobre a programação que eu quero reclamar!
– Há algum problema com a programação?
– Há sim, há problema! O senhor sabe perfeitamente que há problema e não é primeira vez.
– Se tivesse a gentileza de ser mais... explícita...
– Então o senhor não está a seguir a emissão?... o que estão neste momento a emitir, não está a seguir?
– Claro, tenho um monitor aqui mesmo à minha frente.
– Diga-me então o que tem que ver a gravação que estão a transmitir com o que foi anunciado.
– Ah, pronto, já entendi!
– O que está anunciado, para esta hora, na vossa estação, é uma conversa integral e muito privada entre o primeiro-ministro e o cardeal-patriarca. É essa conversa que está na programação!
– Na verdade, minha senhora, tem toda a razão. Tivemos de fazer uma alteraçãozinha por motivo alheio à nossa vontade.
É uma tristeza verificar que alguns órgãos de informação se dispõem a quebrar os mais básicos deveres éticos. Aconteceu – pelos vistos a senhora não sabe – que um jornal desta manhã se antecipou e publicou essa conversa todinha e cá com um destaque!
– Por muito destaque que um jornal dê a uma conversa privada nunca é a mesma coisa que ouvi-la... assim... de viva voz. Pode lá comparar-se!
– Nesse aspecto, estou de acordo com a senhora. Mas reconhecerá que as conversas de substituição que por vezes pomos no ar também não são desinteressantes...
– Ai, não diga isso! Já não há pachorra para repetições como aquela que estão sempre a passar, aquela da conversa nocturna entre uma líder da Oposição e um deputado do mesmo partido, aquele infeliz que padece de asfixia, tá a ver?
– Sim, no entanto… essa conversinha… humm… tem um picantezinho especial... não acha?... Há ali partes… hi hi hi...
– Por favor! Conversas de chacha. Novelas de pátio das osgas. É como esta, a que estão a transmitir agora, entre o sucateiro e o banqueiro. Também já é a terceira vez que a ouvimos. Que seca! Aquela gente passa a vida a falar de "quilómetros", "barrotes", "tijolos"...
– Posso esclarecer. Um "quilómetro" representa mil euros.
– Ah, não sabia.
– E um "barrote" equivale a um maço de cem notas. São termos utilizados pelas pessoas habituadas a movimentar dinheiro. O "tijolo", por exemplo, é de arromba: pacote de dez maços de cem notas.
– Então deviam pôr legendas! A gente assim não compreeende nada!
– É uma ideia a ter em conta, sim-senhora. Creia que não poupamos esforços para satisfazer o público. Agora mesmo está em curso um plano ambicioso no sentido de que uma conversa possa ser de imediato transmitida em directo. Será o "Especial Escuta Directa". Essas, é inevitável, serão sempre integrais.
– Então as outras não são integrais?
– Bem… Convém por vezes fazer um tratamento editorial. Certas coisas não se quadram no nosso Estatuto Editorial. A senhora deverá saber que esta estação é muito zelosa quanto aos princípios da educação e da moral.
– Está a falar das grosserias, daquela linguagem…
– Isso ainda é o menos. Põe-se por cima um “piiii” e pronto. Outras coisas tornam mesmo indispensável um tramento editorial. Em relação ao “Especial Escuta Directa”, aí não há nada a fazer. As conversas terão de ser emitidas em estado bruto, salvo seja. Se começarem a aquecer, pespega-se a bolinha no canto.
– Ui!... está a abrir-me o apetite… Quando começa?
– Aguardamos apenas o parecer da Entidade Reguladora para a Comunicação que em princípio não colocará entraves desde que os escutados não sejam os próprios membros da ERC. Eles agora até deram em imitar o presidente da República e o primeiro-ministro, mudam de telemóvel todos os dias, os malandros…
– Essa gente das regulações sempre foi muito esquisita.
– É verdade. Mas nós sabemos como lhes dar a volta. Vamos negociar, temos gravações muito comprometedoras... hi hi hi..., não se comparam com as que eles interceptaram ao nosso Director.
– Espero que no meio de tudo isso não fique esquecida a reclamação que me levou a telefonar.
– Comunicarei ao Director numa próxima oportunidade.
– Acho que devia comunicar já.
– Já-já é um tanto difícil, estamos todos muito ocupados com a estreia do novo programa de que falei à senhora, no início – o "Diz que se disse na mesa ao lado". No entanto, acredite, não tardarei a contactar o Director.
– Que ele não interprete mal. Afinal o que eu e todo o público pretendemos é apenas que a vossa estação tenha por nós algum respeito, que nos oiça. Tome boa nota disto!
– Esteja descansada. Tá a gravar

Pedro Foyos
Jornalista

6 comentários:

  1. Um verdadeiro tratado sobre a arte de bem escutar em toda a sela, perdão, sobre a arte de bem escutar a mesa do lado...
    Ainda por cima leio este “post” na mesma altura em que as televisões anunciam a chegada à Assembleia da República de MMG, essa figura insigne e verdadeiro paladino da ética e da defesa da liberdade de expressão !!!

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  2. Muito oportuno e não sei se andará assim tão longe da realidade...

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  3. Por mim podem escutar-me 'à la volonté', não tenho nada p'ra esconder...

    :-)

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  4. O retrato perfeito daquilo a que se pretende chamar liberdade de informação, para a "caça" às audiências.
    Ouro sobre azul, para as duas partes: para quêm transmite e para quêm quer ver...
    O "voyeurismo" ao poder!

    Muitos parabéns, Pedro Foyos, por este belíssimo naco de escrita com que nos brindou!

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