quinta-feira, 1 de outubro de 2009

A importância política do voto nulo - Ricardo Araújo Pereira

Quem tem a suprema lata antidemocrática
de dizer que um voto com um dito
ou um desenho indecoroso
é menos válido do que uma cruzinha
num dos partidos listados no boletim?

Mais uma vez, o principal aspecto das eleições legislativas passa sem o comentário dos analistas políticos.
Como é possível que a generalidade dos comentadores passe a noite eleitoral a dizer banalidades sobre os votos nos grandes partidos e não diga uma única banalidade sobre os votos brancos e, sobretudo, os votos nulos?
Os eleitores mais empenhados e que levam mais a sério o seu voto voltaram a ser ignorados em todos os comentários.
No entanto, e como é evidente, não há nenhum eleitor mais abnegado do que aquele que deposita na urna um voto nulo.
Trata-se de um cidadão que se desloca à secção de voto com o objectivo de inutilizar o seu boletim, muitas vezes escrevendo nele uma frase indecente, ou espirituosa, ou ambas - uma obra que será contemplada apenas pelos dois ou três desgraçados que despejam a urna e fazem a contagem dos votos.
Normalmente, a mensagem escrita no boletim é dirigida a um candidato, ou a vários, ou a todos - no entanto, na melhor das hipóteses fará corar apenas a presidente da mesa eleitoral.
Há nisto tanto de poético, de quixotesco e de belo (e é tão curioso que toda essa beleza seja produzida, na maior parte das vezes, pelo desenho de partes seleccionadas do corpo humano) que me dá vontade de chorar.
Mais ainda do que os próprios resultados eleitorais.
Os votos brancos caíram 4544 votos, enquanto os nulos subiram de 65 515 votos para 74 274, o que significa um importante aumento de 8759 votos.
Sem fazer campanha, sem dinheiro do Estado para propaganda, sem tempos de antena, a obscenidade democrática vai trilhando o seu caminho, subindo paulatinamente, sufrágio após sufrágio.
O mais triste, e até injusto, é o facto de este tipo de voto continuar a ser designado por nulo. Quem tem a suprema lata antidemocrática de dizer que um voto com um dito ou um desenho indecoroso é menos válido do que uma cruzinha num dos partidos listados no boletim?
Quando é que a Comissão Nacional de Eleições percebe que este sistema de denominação discrimina precisamente os votos mais livres, mais requintados, mais artísticos?
Nulo, um pirete? Válida, uma cruzinha? Não faz sentido.
O pirete agregador, porque desenhado democraticamente sobre todos os partidos, com a sua pujança fecundadora, é um voto que promete futuro.
A cruzinha, encarcerada num só quadrado, é exclusiva, porquanto elege um e repele todos os outros.
Uma cruz é uma cruz.
Um pirete tem diversos matizes, tamanhos, guarnições.
Há, evidentemente, muito mais num pirete que numa triste cruz.

Ricardo Araújo Pereira in Boca do Inferno"Visão"

7 comentários:

  1. O RAP já é, mas ainda se vai tornar mais, um caso sério no humorismo, e não só, português.
    Não acham?

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  2. Eu já fiz aquilo no século passado, moderei o que lá escrevi porque não queria horrorizar uma "tia" já velhota que estava lá a fazer o frete, e eu sabia que ela se calhar ia ler...

    Em relação ao que disse o Pedro Miguel, tenho uma teoria: os gajos que saem do PêCê e têm algum talento tornam-se muitas vezes um caso sério. Acho, sim senhor.

    :-)

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  3. Ontem à noite senti-me "vingada" como Esmiuçar dos Gatos!!!!
    É que é mesmo assim, (talqualissimamente) que EU me sinto - BARALHADA!!!!!!!!!

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  4. Ora tomem lá, de outras paragens...

    Ser português todos os dias cansa

    1 de Outubro de 2009 por Morgada de V.

    El lector ya se ha dado cuenta de que, en realidad, Portugal es un país inviable. Siempre lo ha sido. No posee una individualidad geográfica; sus raíces más profundas las comparte con Galicia; su propio idioma es una evolución, una mundialización del gallego. La independencia portuguesa hay que crearla todos los días. Por eso, ser portugués cansa muchísimo. Se puede ser alemán, británico o francés tranquilamente, pero sólo se puede ser portugués en la intranquilidad.

    A fúria nacionalista que se soltou nos comentários a este artigo, com ameaças de atirar o autor (português) pela varanda por crime de lesa-pátria, dá razão à tese que lhe subjaz.

    Um inglês pode, com tranquilidade, praticar essa arte própria de nações confiantes que consiste em olhar-se a si próprio com ironia e distância, aquilo a que Sir T. chama humor “self-depilatory” e os dicionários registam, maçadores, como “self-deprecatory”; já um português tem de repetir todos os dias “o meu passado é maior que o teu” e torcer-se em palmadinhas nos nobres costados.

    Uma canseira, realmente, mas como diria Joseph Snow, seja tudo pelo nosso Benfica.

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  5. A parte de cima está escrita em españuel, mas é do prof. Gabriel Magalhães, no jornal espanhol 'La Vanguardia'.

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  6. Nós achamos sempre que temos caracteristícas, na geralidade más, que os outros Povos não têm.

    Eu que , por razões que não vêm ao caso, vivi em três países com realidades muito diferentes( Estados Unidos, Grã Bretanha e Bélgica)apercebi-me que os naturais de cada um desses países achavam precisamente o mesmo que nós - que todos eles tinham defeitos e deficiências que mais ninguém tinha, no resto do Mundo.

    Não quero, nem sei, chegar a nenhuma conclusão,é apenas uma pequena achega aos comentários acima...

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  7. As 5 ou 6 primeiras linhas do artigo do prof. G.M., traduzidas livremente por mim do castelhano:

    traduttore, traditore...
    :-)




    Portugal transmite uma suave impressão de caos, assim como o que se sente quando se entra numa loja de antiguidades.

    O país vive na esquizofrenia de ser agora uma pequena nação, que levou a cabo grandes coisas antes.





    Isto é só para vos despertar o apetite, espanhol escrito por um português lê-se nas calmas...

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