quinta-feira, 25 de junho de 2009

Delírio

Sempre alimentara a fantasia de viver num hotel.
Gostava da atmosfera anónima dos hotéis e por isso o que privilegiava era o conforto e um serviço irrepreensível.
Os hotéis de charme e os turismos de habitação tão em voga, com uma oferta a apostar numa relação de proximidade com o cliente, não agradavam a Francisco.
Poderiam servir para umas curtas férias, mas quando se tratava de alimentar relações preferia os amigos, que o convidavam com frequência para fins-de-semana.
O que o atraía mesmo, para o quotidiano, era a impessoalidade de um hotel.
Sonhava com o despojamento de bens materiais, tudo o que uma casa tem de ter para ser habitável era-lhe pesado.
A ideia de ir recheando uma casa com o passado, um objecto aqui, outro ali, era-lhe oposta.
Não havia dúvidas, uma boa suite de hotel apenas com a sua música, os seus livros e a sua roupa, sem quaisquer preocupações logísticas, era o que considerava ideal.
Francisco gostava de ordem e limpeza e sabia que quanto mais simplificasse a vida, tornando-a prática, mais essa característica, que aliás detestava em si, poderia ser atenuada.
Pensava em tudo isto em casa de uns amigos para onde fora convidado num fim-de-semana comprido.
Durante um dos serões, enquanto a Maria José lhe relatava os infortúnios do seu anterior casamento e que passavam muito pela desordem caseira que o marido instalava, Francisco, entediado com o tema, arrependeu-se de não ter ficado na pensão mais próxima.
Tinha passado por lá, não era uma pensão mas sim a casa de uma senhora que alugava quartos. Modesta e de gosto duvidoso, repleta de bibelots, era uma casa onde os hóspedes faziam a sua vida de todos os dias, entravam e saíam como se ali vivessem.
No dia seguinte desfez-se do conforto e alugou um desses quartos.
Aí passou uns dias, a entrar e a sair numa grande agitação.
Numa tarde em que regressava à casa, encontrou uma mulher no seu quarto.
Antes de ter tido tempo de fazer qualquer pergunta, já a mulher, bastante mais velha, lhe dizia ter sido ela a alugar aquele quarto.
Não se importou, apesar do embaraço da situação.
De repente olhou para a cama que estava desfeita e cheia de água.
O edredão de florezinhas miúdas boiava.
A aflição que sentia levou-o a desfazer-se em desculpas perante a mulher.
E se ela achasse que tinha sido ele, de propósito, a encher a cama com água?
A mulher mais velha ria com gargalhadas sonoras.
E ele cada vez mais aflito.
Até que sentiu o corpo a ser abanado e dois estalos na cara.
Foi então que acordou e viu a Maria José à sua frente.

Nunca chegou a entender onde diabo fora buscar aquele sonho
ou mesmo pesadelo,
mas aos poucos a ideia de viver num hotel abandonou-o.

Pinta

2 comentários:

  1. Já há muito que não tinha o prazer de ler um Conto da Pinta e , como a maior parte das outras vezes, gostei...apesar de um pouco delirante.

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  2. Esse Francisco pode estar a precisar de tratamento, nas a sua forma de escrever, cada vez mais depurada, não.

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