Foi pela mão do pai.
Pequeno, pela altura do cinturão.
A mãe rogava-lhe para que não fosse.
Naquele tempo… não era espectáculo para a sua idade, insistiu. Não o suficiente para demover o pai que parecia querer mostrar ao miúdo as agruras dos homens expostas da forma mais primária e grotesca.
Via muito pouco no meio daquela confusão mas sentia a emoção nas bancadas.
Os gritos, os hurros. Braços levantados, punhos cerrados e muita, muita acção.
Lá em baixo na arena, os homens lutavam por um objectivo não muito claro, pelo menos para si.
Uns corriam em bandos, outros destacavam-se isolados.
O pai, a par e passo, abaixava-se a seu lado e, apontando para eles, dizia-lhe o que cada um estava a querer fazer, e que ele não entendia.
Óbvia era a luta. Pontapeavam-se com violência e perseguiam-se mutuamente, em hordas desordenadas.
Aqueles homens odiavam-se, seguramente, e seriam os mais temíveis inimigos entre si.
O espectáculo durou muito tempo.
Alguns feriram-se e eram retirados para rapidamente se retomarem as perseguições e fugas. Percebia que o pai, como outros, estava muito abarcado naquela emoção e gritava coisas que o baralhavam: pedia mais leões, mais ataques.
Vitória ou morte! – disse a dada altura.
Isso fê-lo retrair-se e num gesto próprio da sua tenra idade, abraçou a perna do pai, de olhos fechados, e pediu o fim de tudo aquilo.
As suas preces foram ouvidas e após um grande hurro final, todos partiram em debandada, deixando desertas as bancadas.
Na arena não viu mais ninguém: nem mortos, nem feridos, nem os tais leões que o pai exigira.
O rasto dos confrontos, porém, ainda era bem visível, sobretudo nas bancadas que estavam repletas de destroços certamente provenientes do alastramento da luta.
E pela mão segura do pai, foi entrando na barriga do monstro, por debaixo das bancadas.
Os corredores escuros estavam já vazios.
Ao longe escutavam-se vozes fortes, rudes, mas em tom, desta vez, fraterno.
Ouvia-as cada vez mais perto.
Estavam agora num compartimento ali mesmo ao lado.
Encostou-se à parede, assustado e ficou à escuta, enquanto o pai ficou detido em abraços e pancadas nas costas com alguns homens que por vezes via em sua casa.
O corredor onde estava era algo sombrio.
Sentiu-se, então, tentado a espreitar pela única frincha de luz que alumiava aquele breu. Provinha das vozes; as mesmas vozes que ouvira no campo de batalha.
Temia ver homens esventrados, deglutindo as tripas dos adversários, em escabrosos rituais de guerra, como ouvira falar.
A curiosidade naturalmente venceu-o e a luz atraiu-o como a um insecto.
Arranjou coragem, e, com um olho aberto e outro cerrado, colou o rosto à frincha da porta.
Ficou horrorizado.
Os mesmos homens que haviam lutado - pela vida!, supusera - momentos antes naquele campo pelado, estavam, agora, todos juntos numa clara confraternização.
Meios nus, molhados, riam e vociferavam abraçados uns aos outros, mesmo vestindo cores diferentes.
Rapidamente se convenceu que todo aquele espectáculo tinha sido encenado.
Era tudo a fingir: a luta, a guerra, os pontapés.
Tudo falso. Ficou destroçado e repudiou o resto do convívio com o pai, insistindo num rápido regresso a casa.
Passaram-se mais de cinquenta anos e continua sem gostar de futebol; de derbies, então, nem ouvir falar.
Dear Prudence
segunda-feira, 29 de junho de 2009
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Muito profundo e interessante.
ResponderExcluirGostei.
É um retrato vivo da triste realidade.
Boa, finalmente um conto sobre futebol...
ResponderExcluire deve ter sido escrito por uma mulher porque os adversários a conviverem aos abraços nos balneários, só em sonhos...femininos.
Quanto ao texto e à sua qualidade literária, cinco estrelas.
Excelente narrativa de uma, mais uma, boçalidade masculina.
ResponderExcluirQuanto a sonhar com balneários masculinos, só talvez o PMP...
Quando Deus quer, tenho fantasias passadas nos balneários masculinos do futebol e nos femininos de vólei...
ResponderExcluirMuchas gracias pelos comentários.
ResponderExcluirA saber - porque acho muito interessane a origem deste conto:
Sim, a história é baseada em factos reais.
O pai de uma amiga, nascido em 1926 e entretanto já falecido, foi pela 1ª vez ao futebol no início da década de 30, ver um Sporting - Porto (acho).
Aí, imbuído do espírito das bancadas, encarnou de tal forma a febre por uma das equipas que, quando viu os dois times de facto JUNTOS no mesmo balneário ficou desiludidíssimo com tudo aquilo (suponho que nos anos 30 estes balneários comuns fossem coisa habitual; ainda há pouco vi na TV o "Chariots of Fire" e achei incrível que todos os atletas estavam no mesmo espaço/balneário a prepararem-se para a finais dos J.O.).
Curiosamente, tornou-se jornalista desportivo... de corridas automóveis!
E nunca gostou de futebol.