terça-feira, 23 de junho de 2009

Não estamos sós

Tudo é uma coisa só
Heráclito

Creio tratar-se de estreia absoluta neste espaço:
uma epígrafe a introduzir um texto.
Ainda por cima uma epígrafe heraclitiana,
ou seja, velha e revelha de milénios,
anterior quinhentos anos ao início da era cristã.
No entanto, é a mais intemporal das fórmulas filosóficas,
tão moderna hoje como o será dentro de mil anos.
Releia-se a frase do grande filósofo sofista.
É genialmente simples e óbvia.
Ninguém disse tanto em tão poucas palavras.
Todavia, à semelhança de muitas outras observações de Heráclito,
foi ele o primeiro a iluminar o que para todos era visível,
o que estava à vista de todos mas... ninguém tinha ainda visto.
Como o conceito do «tudo flui»
– exemplificado com outra citação histórica:
«Ninguém se banha duas vezes na água do mesmo rio.»
Na continuação deste texto verificar-se-á que a invocação de Heráclito faz sentido.
Eis: a propósito da minha última crónica, um estudante brasileiro de Biologia a residir em Lisboa, tão apaixonado como eu pelo tema do infinitamente pequeno/ infinitamente grande, chama-me a atenção para uma experiência extraordinária que decorre há anos na Faculdade de Medicina da Universidade de Nova Iorque. Uma equipa de cientistas liderada pelo microbiólogo Martin Blaser elegeu como objecto de exploração a "vida invisível" na epiderme humana. Não a totalidade da epiderme mas tão-só uma área restrita a escassos centímetros do antebraço de um ser humano saudável. O primeiro estudo, em 2005, permitiu identificar cerca de 50 espécies de organismos diferentes. Entusiasmados, os cientistas solicitaram então mais apoios tecnológicos, no convencimento de ser possível aumentar o censo da população de bactérias e de ácaros hospedados nas nossas impolutas epidermes. Foi assim que, no início de 2007, dispondo a equipa de renovados equipamentos electrónicos, a par de avançadíssimos métodos moleculares, se encontraram 247 espécies de bactérias, 44 das quais desconhecidas. Algumas destas, presume-se, não fazem da pele a sua residência permanente, estão apenas de passagem, espairecendo por breves temporadas: pura fruição de mudança de ares.
A exploração está longe de poder considerar-se terminada – anuncia a revista norte-americana Proceedings of the National Academy of Sciences. Ainda este ano a mesma equipa estreará equipamentos mais sofisticados que revelarão, com elevado grau de certeza, novos e desconhecidos seres que se passeiam à superfície dos nossos corpos.




O lema memorável da ficção científica
Não estamos sós – continua adiado no respeitante aos planetas de longes mistérios.
Inútil perscrutarmos as estrelas.
A nave espacial exploradora do
infinitamente grande inverte a direcção
para o infinitamente pequeno: nós próprios.
Sabemos agora que transportamos
uma Gorongosa liliputiana.
Não vemos (pelo menos a olho nu) os alienígenas domiciliados na nossa epiderme, que são, estes sim, bem reais, ao contrário dos outros, os entediantes extraterrestres da nossa eterna espera.

Tudo é uma coisa só.
Tudo flui, disse Heráclito.
Dois mil e quinhentos anos depois, Feyerabend resigna-se a dizer o mesmo, mas em inglês: «Everything goes», ou seja: tudo possui a sua função numa organicidade global.
A equipa de Martin Blaser descobrirá amanhã a última criatura microscópica, mais microscópica do que todas as anteriores.
Mas será mesmo a última?
Talvez seja a primeira de um novo ciclo de sombras.
Ou de luz. Não sabemos.
Onde e como acaba a confusão e começa a fusão?
Quantas vidas contém a vida?
Quantas vezes se morre?

Vi há tempos uma imagem, criada por microscópio electrónico, de um grânulo de pólen ampliado três mil vezes.
Impressionou-me, para além do prodígio, a espantosa semelhança desse grânulo com as conhecidas imagens do planeta Terra visto do espaço.
Diverti-me a imaginar um habitante de uma estrela longínqua observando o planeta Terra ampliado três mil vezes e impressionando-se com a espantosa semelhança desse planeta com um grânulo de pólen.
Não ampliado.





Pedro Foyos
Jornalista

3 comentários:

  1. Ainda não tinha comentado o "Traço Descontínuo" do Pedro Foyos, que tenho acompanhado com muito interesse. Gostei particularmente deste texto.

    Nunca me interessei muito pelas estrelas e extra-terrestres. Os filmes de ficção científica como a Guerra das Estrelas nunca fizeram parte da minha lista de eleitos. Olho para as estrelas cadentes nas noites do verão alentejano e é tudo.

    E este texto lançou-me algumas pistas sobre este meu desinteresse (que me desconcerta por vezes).

    O ser humano é, de facto, infinitamente grande na sua pequenez face ao Universo. E talvez seja por isto que o Espaço fique fora dos meus horizontes. Com tanto para observar à minha volta...

    E fiquei a pensar nas muitas vezes que olhamos para o céu a perguntarmo-nos "quem mora lá?" e nos esquecemos de quem mora ao lado, de quem mora em nós... Cientificamente. Socialmente. Afectivamente.

    No investimento (a vários níveis) que se faz no infinitamente distante, votando ao abandono o infinitamente perto.

    E foi nisto que fiquei a pensar quando li este magnífico texto. Gostei muito! Um Olé com Duende!

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  2. Não podia estar mais de acordo com um comentário, do que com este da La Payita.
    A começar pela qualidade dos textos do pedro Foyos até ao esquecermo-nos d quem mora ao lado.
    Parabéns aos dois, autor e comentadora.

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  3. O texto é soberbo e a primeira imagem também.

    O Traço começa a fazer parte da casa.

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