terça-feira, 16 de junho de 2009

O Centro do Mundo

Subiu o único degrau que dava acesso à porta do prédio anónimo, igual a todos os outros daquele bairro da periferia de Lisboa. Caixotes de prédios, milimetricamente iguais, verdes e cinzentos. Tocou à campainha e esperou.
Tinha doze anos e as certezas todas.
Era hoje o último dia que o via e não sairia dali sem a sua missão cumprida: subir ao terceiro andar e trazer consigo os tesouros amealhados durante a infância.
Numa caixa de papelão estavam os bonecos de plástico do Pequeno Cid, coleccionados nas cadernetas dos cromos, o Jogo da Glória, numa caixa com os cantos ruídos pelo uso e ao qual já faltava o peão vermelho, e os berlindes conquistados nos recreios da escola primária, com particular apego pelo abafador oferecido pela primeira namorada.
Tinha doze anos e o mundo girava à volta do seu umbigo e da última borbulha descoberta ao espelho. Estava decidido e tocou à campainha.
O pai desceu, arrastando nos sapatos a derrota prematura de uma vida imaginada de outra maneira. Não o deixou subir.
Ele ainda arquitectou o plano do copo de água para matar uma sede inexistente, mas o pai foi inflexível.
Bebia no café, trezentos metros à frente. Seguiu-o, arrastando nas sandálias a derrota de uma estratégia cuidadosamente planeada durante uma semana.
Nunca mais tocou à campainha. Não tornou a ver o pai. Os brinquedos perdidos…

O mais distante que se lembrava era de quando tinha três anos.
Os pais ainda viviam juntos e brincava na rua antes do jantar.
O assobio especial do pai, que vinha da janela, dizia-lhe que era hora de voltar.
Não consegue recordar o momento em que tudo mudou e o assobio se calou.
Não registou o motivo porque ganhou aversão a festas de aniversário, mas aconteceu-lhe. Subitamente, a recusa em comemorar os anos, a virar a cara no instante crucial do apagar das velas.
Não entendeu o porquê das zangas constantes, do desinteresse nele, dos castigos a propósito de nada.
Mas aconteceu-lhe a ele, o centro do mundo, e foi viver para uma nova casa.
Num prédio verde e cinzento, anónimo. Deixando para trás a caixa de papelão com os tesouros da infância. As visitas à casa antiga, marcadas e planeadas. Semanais.

Tinha doze anos e não tornou a ver o pai até aquele dia em que o telefone tocou para dar a notícia. Voltou a vê-lo, deitado no leito final. As mãos cruzadas no peito. A roupa de cerimónia, envolta nos panos brancos bordados, cuidadosamente escolhida pelas tias. As condolências de parentes esquecidos na memória a trazer assobios de outras épocas. Entregaram-lhe a chave da casa antiga, para arrumar o passado. Ou o que restava dele…

Subiu o único degrau e meteu a chave na fechadura. Entrou na casa antiga, no terceiro andar. O cheiro a bafio invadiu-o e sentiu dificuldade em respirar.
Sôfrego, dirigiu-se ao quarto, na demanda pela caixa de papelão.
E lá estava ela, arrumada no cantinho do costume. Desdobrou as abas entrelaçadas do cartão mole e reencontrou-os, os tesouros perdidos.
O Jogo da Glória desfeito, os bonecos de plástico de cores comidas pelo tempo e o abafador de riscas azuis e verdes…
E uma pequena caixa de ourivesaria amarela-pálida, com inscrições em letra dourada. Abriu a caixa e espreitou.
Lá dentro, enrolado em algodão, um cordão umbilical, resquícios secos de uma ligação primária. O umbigo. O dele, outrora o centro do mundo.

Maktub

8 comentários:

  1. Um grande conto que podia dar origem a um grande filme do Polanski.Grande Maktub.

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  2. Um notável conto.
    Bem urdido,bem escrito, bem misterioso.
    Parabens.

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  3. Grande Maktub de facto. Consegue-se sentir.

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  4. Não me é muito fácil emocionar com a palavra escrita, sou mais atreita á música ou à imagem, e este pequeno/grande conto
    conseguiu-o.Obrigado Maktub.

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  5. Embora já tenha afirmado aqui, gostar de temas mais leves e bem dispostos, tenho que reconhecer que este(a)autor(a)sabe escrever e emocionar o(a) leitor(a).

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  6. Temos que melhorar esse astral Maktub.
    Que tal umas nights, acompanhadas a mojitos e caipirinhas ?
    Alinhas ?
    A propósito, gostei do Conto embora angustiante...

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  7. Gostei. Um conto intenso. Espero que tenha apenas sido o reflexo do momento do autor.

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  8. Muito bom...mesmo muito bom!
    Está aqui a semente de um filme fantástico!

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