terça-feira, 30 de junho de 2009

O livro que ando a ouvir

"Silêncio! Lisboa Capital da Palavra" – feliz lema para o Festival do Audiolivro que decorreu na última semana por iniciativa de três editoras pioneiras.
Sou um incondicional apoiante do "audiobook" (como se diz ainda por aí), tão escassamente explorado em Portugal, em contraste com o que acontece nos EUA, em vários países europeus e também agora no Brasil.
Há anos, no metro de Londres, surpreendi-me ao dar conta, pelas capas plásticas sobre os joelhos de alguns passageiros com auscultadores, que eram livros o que ouviam e não música.
Segundo os dados divulgados pela organização do "Festival Silêncio!", existem países onde o audiolivro abarca dez por cento do mercado editorial.
Quase sempre o lançamento do livro impresso ocorre em simultâneo com o respectivo CD audio, o que é desejável, pois não se defende a substituição de um modelo por outro, exceptuando a situação óbvia dos invisuais.
Desconhece-se a percentagem desse segmento em Portugal, mas não erraria calculando que em dez mil títulos publicados em papel haverá um com a correspondente versão sonora.
Sublinhe-se, no entanto, que o pouco existente é de magnífica qualidade.
Dos autores de língua portuguesa merecem destaque Fernando Pessoa, Eça de Queirós e os contemporâneos Gonçalo M. Tavares e José Eduardo Agualusa.
Os estrangeiros são em maior número, com realce para Paul Auster, Stefan Zweig, Luis Sepúlveda e Gogol.
As vozes são em geral de excelência (não escondo a minha predilecção pelo jornalista da TSF, Fernando Alves, e actriz Maria do Céu Guerra).
Em Junho de 2007 participei num colóquio em Lisboa, na Livraria Barata, em que o tema do audiolivro atraiu confrangedoramente pouco mais de uma dezena de cabeças pensantes.
Numa troca de impressões com alguns dos presentes sugeri que uma futura campanha promocional incorporasse a ideia da imensa antiguidade do audiolivro.
Exemplificando: «Quando o livro foi inventado, muito antes já o havia sido o audiolivro.» Indispensável complementar tal asserção com a imagem dos bardos homéricos que representaram de facto os primeiros "audiolivros".
Em comunidades de analfabetos, esses bardos garantiram a perpetuação memorial de muitas obras-primas.
Os antigos gregos apreciavam os livros mais pelo efeito auditivo do que visual.
A "literatura" era para ser lida em voz alta, entoada, declamada.
Tucídides, o primeiro que deu à História um carácter científico e que chorava em público ao escutar as Histórias de Heródoto, chegava a pedir desculpa por recorrer à palavra escrita, um registo menor, cujo único mérito – dizia – era o de permitir «uma posse para sempre».
Sócrates, intermediado por Platão em Fedro, fustigava «aqueles que não conseguem erguer-se acima das suas compilações e composições, que passam o tempo a remendar e a cerzir...»
E qualificava com impiedade de indignos do nome de "amantes da sabedoria, ou filósofos" quantos não se mostrassem capazes de defender as ideias «com argumentos orais, que levam vantagem na comparação com os escritos.»
Melhor promoção, admito, seria alertar as pessoa para milhares de horas malbaratadas a ouvir e a ver programas de superlativa estupidificação, publicidade massacrante, concursos infindos.
Ah!, também os nossos ayatollahs da política e da bola, esses sábios que à hora do costume vão ratando em todos os televisores da Nação e que nas pantalhas envelhecem connosco, noite após noite, com os ritos e tiques de todos os dias.
Poderiam ser revezados de quando em vez pela audição de um bom romance.
Outra promissora via de futuro para o audiolivro são os engarrafamentos de trânsito.
Com algum grau de alucinação consigo imaginar um mar de condutores imobilizados, cada qual ouvindo o género de literatura da sua preferência: romance, conto, poesia...
Montemos a peça. Enclausurados no nosso veículo de rodas tolhidas, vemos à esquerda um condutor lavado em lágrimas.
Inúmeros factores estarão na origem do estranho comportamento.
Prefiro o seguinte: o sujeito ouve E Tudo o Vento Levou, precisamente aquela sequência lancinante em que a bela Scarlett O'Hara regressa a casa e encontra a mãe morta, o pai louco e toda a fortuna em fanicos.
Mas, repare-se!... à nossa direita, sim, mesmo aqui ao lado, outro ri-se a bandeiras despregadas. O próprio carro parece gargalhar, saltiricando nas oportunidades de avançar um metro. Poderemos intuir (mera presunção) que está a ouvir uma antologia dos melhores trechos humorísticos postados num blog com o nome, já de si risível, de O Galo de Barcelos ao Poder.








Pedro Foyos
Jornalista

2 comentários:

  1. Ora aqui está uma bela ideia para uma pessoa que, como eu, viaja muitas horas de carro, na maioria das vezes sózinho.
    Logo já vou a uma FNAC ver os títulos dísponiveis.Obrigado PF.

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  2. Boa !!!
    Um grande abraço
    Armando
    ( como vês ... já sou seguidor do blogue)

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